quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Comentando Gonzaga, de Pai para Filho



Ontem à tarde fui assistir Gonzaga, de Pai para Filho. É curioso, mas é o segundo filme de Breno Silveira que assisto este ano. Afinal, é dele o belo À Beira do Caminho. Como pontuei na resenha deste último filme, o diretor é um especialista em retratar em tela a relação entre pai e filho. Com muita sensibilidade, seus filmes sempre discutem a paternidade, o conflito de geração, a busca de compreensão entre dois (*ou mais*) homens. Tudo no masculino mesmo. Sei que sempre comento a Bechdel Rule no final, mas vou mudar a ordem e dizer de saída que Gonzaga tem várias personagens femininas com nomes, razoavelmente construídas, e que aparecem em inúmeras cenas, ainda assim, não cumpre a regra. Só que eu não tenho problema algum em registrar que, neste caso, eu não me importo, porque Breno Silveira não nos engana. Seus filmes – os que assisti, pelo menos – são sempre muito sinceros nos seus objetivos. Gonzaga não é diferente, a começar pelo título.

O filme retrata a vida de Luís Gonzaga, o “Rei do Baião”, que completa este ano 100 anos de nascimento, e, especialmente, sua conturbada relação com seu filho, Gonzaguinha. Eu sou um zero a esquerda em música, já escrevi aqui várias vezes, mas foi delicioso descobrir que algumas das músicas que eu conhecia eram de Gonzaguinha, sei quase nada sobre sua obra. Da mesma forma que ouvir de novo muitas músicas de Luís Gonzaga foi muito bom. Dele eu sabia mais melodias, mas muito pouco de sua “história”, assim, entre aspas, porque filme nenhum tem obrigação em contar a História, com H maiúsculo, porque, para começo de conversa, toda história tem vários pontos de vista. Em Gonzaga, Breno Silveira costura bem essa questão ao confrontar o olhar do pai com a visão do filho, os defeitos e frustrações de ambos, a dificuldade de entendimento. E, sim, eu quase chorei em alguns momentos.


Asa Branca, o hino do sertão, sempre me comove e eu sempre fico no limiar das lágrimas. E mesmo não tendo nascido no Nordeste, minha família é originalmente de migrantes nordestinos, o drama me é familiar, me toca, me sensibiliza. Não considero o filme um dramalhão, não pensem isso, por favor. Há momentos dramáticos, como a questão da tuberculose e o definhar da esposa de Gonzaga, Odaléia, defendida pela excelente Nanda Costa. Sim, a personagem da novela das nove pode ser uma chata, mas a atriz é muito competente e pode crescer ainda mais. É dela uma das melhores cenas do filme e ponto de partida do estranhamento entre pai e filho.

Odaléia é uma mulher livre, acostumada à noite, dançarina de profissão. É assim que Gonzaga a conhece, comprar cinco danças com ela e os dois se apaixonam. Como há muita história para contar – e esse sempre é um ponto complicador de uma cinebiografia – os dois logo se casam. E é Gonzaga, em entrevista ao filho, que diz que sua mentalidade tacanha de sertanejo estragou a relação entre ele e a esposa. Gonzaga quis trancá-la em casa, excluí-la de seu mundo de trabalho, impedi-la de dançar e cantar, o maior desejo da moça. Ela sai grávida de casa para a boate onde costumava trabalhar e Gonzaga a pega dançando e agindo com muita intimidade com um músico e coloca em questão a paternidade da criança. Odaléia lhe dá um tapão na cara e diz “Esse filho não é seu (*e não é de homem algum*), ele é MEU!”. E sai de casa. É uma cena que redefine a relação dos dois. Compreendo Gonzaga, suas inseguranças motivadas pelo machismo, mas é indubitavelmente uma cena das mais feministas que vi nos últimos filmes. Mas Odaléia – que nas fotos originais era muito mais negra que Nanda Costa – vai embora cedo.


O filme pontua a relação de pai e filho. O carinho de Gonzaga (pai), mas sua incapacidade de conviver com o menino. Sua necessidade obsessiva de “ver o filho doutor”, o seu sucesso resgatando suas raízes nordestinas, sua incapacidade como letrista por conta da educação formal limitada e as parcerias, o fato de ter transformado o acordeom (*minha mãe toca acordeom*) em um instrumento mágico e sua projeção como show man. Eu me lembrei de Great Balls of Fire, filme sobre Jerry Lee Lewis, em que é muito bem ilustrado que o pianista pode fazer performances maravilhosas, levantar a platéia, literalmente “incendiar” multidões. Gonzaga faz isso com seu acordeom. Mas vem a decadência, novos gêneros musicais, o empobrecimento, o conflito político com o filho... A questão da Ditadura está no filme, a posição política de Gonzaguinha fica bem marcada, a de Gonzaga, nem tanto, mas foi muito coerente não forçar demais esta discussão. Ela está no filme, tem sua parte, sendo somente veículo para ilustrar a oposição entre pai e filho.

O filme tem alguns defeitos, claro. O iniciozinho ficou parecendo uma minissérie da Globo (*que banca parcialmente o filme*), daquele tipo Dalva e Herivelto: uma Canção de Amor, ou seja, material de qualidade, mas formato televisivo. Esse início é bom, mas não é cinema, entendem? Há o romancezinho entre Gonzaga e a filha (Cecilia Dassi) do Coronel, interpretado pelo Capitão Herculano (Domingos Montagner). Sua primeira frustração já que a moça é branca, estudada e rica (*para os padrões locais*) e ele é pobre, mulato e semianalfabeto. É o único momento em que a questão racial é trazida e fica colocada de forma clara e não forçada. A família de Gonzaga é aliás, um excelente painel, pois rompe com aquela imagem da mulher nordestina subordinada. Há divisões de papéis, mas, com certeza, é a mãe de Gonzaga, Santana (Cyria Coentro), a voz de força e a disciplinadora da casa. Seu Januário (Claudio Jaborandy) é o pai amoroso, mas as decisões são partilhadas e a voz da esposa é de força. Nada que eu não conhecesse das minhas experiências familiares. Sofridas, sim, subordinadas a alguns papéis de gênero e à dupla moral, sem dúvida, mas altivas, trabalhadoras, fortes. Foi um belo retrato, mas essa primeira parte é indubitavelmente material televisivo.


Uma questão importante e grande acerto do filme foi alternar os atores. Gonzaga é feito por três artistas diferentes, Adelio Lima (70 anos), Chambinho do Acordeon (25-50 anos) e Land Vieira (17-23 anos). Eu fiquei realmente surpresa, porque quase acreditei que Chambinho do Acordeon e Adelio Lima eram o mesmo ator... Os dois atuam muito, muito bem, especialmente se considerarmos que Chambinho do Acordeon é músico, não ator. E como ele toca e encanta... A seqüência quando ele pega um anão e um sapateiro para músicos é maravilhosa. :) Já Gonzaguinha é interpretado por Julio Andrade (35-40 anos), Giancarlo di Tomazzio (17-22 anos) e Alison Santos (10-12 anos). Há também a fase bebê, mas não achei informação. Julio Andrade ficou tão parecido fisicamente com Gonzaguinha que assusta. Muito mesmo. Já Adelio Lima não me parece Luís Gonzaga idoso, mas tem uma grande atuação. Esse tipo de troca é fundamental, pois manter o mesmo artista por toda a vida de uma personagem tem sido o grande erro de produções nacionais e estrangeiras.

Enfim, há outros destaques no elenco, majoritariamente negro e nordestino, como João Miguel (*protagonista de À Beira do Caminho*), Silvia Buarque (*Dina, mãe de criação de Gonzaguinha*), Luciano Quirino (*Xavier, primeiro parceiro de Gonzaga no Rio e marido de Dina*), Zezé Motta (*quase irreconhecível como Priscilla, irmã de Gonzaga*), Roberta Gualda (*como a segunda esposa do Rei do Baião e “madrasta má” de Gonzaguinha*). Aliás, é a personagem de Roberta Gualda que aprofunda a distância entre pai e filho ao atacar a virilidade de Gonzaga. Como ter certeza de que ele é pai de Gonzaguinha se não consegue engravidá-la? A segunda esposa de Gonzaga fingiu uma gravidez e “arranjou” um bebê que registrou como filha dos dois.


Enfim, ainda que não consiga ser um filme tão robusto quanto À Beira do Caminho, Gonzaga é superior à Dois Filhos de Francisco em roteiro, fotografia, inserções musicais, atuações e uso de material original. É um filme emocionante, mas, repito, não é apelativo. Tem vícios da TV, mas não se deixa dominar por eles. Para quem conhece Gonzaga e Gonzaguinha, para quem curte forró (*não essas coisas pornográficas que estão por aí hoje*) e baião, para quem tem raízes nordestinas, para quem gosta de ver discutidas as relações entre pais e filhos, é um filme altamente recomendado. Agora, é esperar pelo próximo filme sobre o tema que Breno Silveira vai fazer. Vou procurar Era uma Vez... para ver se ele se sai bem com algo diferente. Antes de terminar, preciso ressaltar que o aproveitamento do filme foi prejudicado pela falta de luz. O filme foi interrompido três vezes, porque mesmo o gerador não foi capaz de dar conta da demanda. Mas foi só isso.

2 pessoas comentaram:

Acredito que valha a pena. Eu não sou muito fã do Luiz Gonzaga em si, mas sempre apreciei a obra do Gonzaguinha – principalmente da fase em que ele assinava Luiz Gonzaga Jr. O detalhe é que se analisarmos friamente, ela não é uma continuidade da obra do pai, é uma obra toda própria, o Gonzaguinha era quase um antípoda estético ao pai, tinha um discurso incisivo nas letras.

Ah, mas o filme não reforça a idéia de continuidade, o que se enfatiza é que o talento musical estava na família, não adiantava Gonzaga tentar afastar o filho desse meio.

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