No final da semana passada, terminei de ler Ōoku (大奥) #7. Foram meses de espera até que o volume fosse lançado e chegasse às minhas mãos. Tanto tempo que eu tive que reler o volume #6 para me situar de novo... E reler parte do volume #1 para relembrar certas coisas. Ler a série de Fumi Yoshinaga é delicioso, mas não vou enganar ninguém dizendo que é fácil. Trata-se de um mangá que exige mais do leitor do que a média dos quadrinhos que conheço. Para começo de conversa, a narrativa não é linear o tempo inteiro. Voltamos, portanto, no volume #7 para o volume #1, depois de um longo flashback. Bem, foi um volume maravilhoso e boa parte das minhas apostas na resenha do volume #6 falharam. Acertei quase nada e, mais uma vez, Fumi Yoshinaga me surpreendeu.
Tsunayoshi, Gyokuei, Emonnosuke, Yanagisawa, Akimoto todos saíram de cena no volume #6. Terminou de forma melancólica o reinado problemático da filha de Gyokuei, discípulo de Arikoto. A nova shogun, a bondosa Ienobu, não sobrevive por muito tempo. Devorada pela dor, Manabe, valete e fiel servidora da shogun, deseja a morte, mas Sakyo, concubino de Ienobu, a impede e os dois tem uma ardente e única noite de amor. Ietsugu, uma criança de quatro anos, se torna a nova shogun. A menina, nós sabemos desde o primeiro volume, teve vida curta, sendo sucedida por Yoshimune. O volume #7 começa com o seu reinado e mostra como nossa shogun favorita conseguiu chegar ao poder.
O volume #7 foi um dos melhores volumes até agora. Misturando intriga política, drama, traição, honra, amores não correspondidos e uma discussão muito importante sobre os absurdos do patriarcado, ele foi demonstração do amadurecimento cada vez maior da autora. Neste volume, a parte de intriga política coloca em cena várias personagens que conhecemos no primeiro volume, como detestável Fujinami, o Supremo Camareiro do volume #1, aquele mesmo que enviou Mizuno para a morte. Pois é, neste volume sabemos como essa cobra conseguiu chegar ao posto e temos mais informações sobre seus vícios e competências.
Na verdade, o reinado da jovem Ietsugu, uma criança muito inteligente e de saúde frágil, é um jogo de espera. Nem seus partidários mais ardentes acreditavam que ela chegaria à idade adulta. De um lado, estão as antigas conselheiras de Tsunayoshi, que Ienobu não desalojou, e o consorte-viúvo da shogun. Eles desejam Yoshimune como governante. Do outro lado estão Manabe, que provavelmente conspirou para a morte da irmã mais velha de Yoshimune, a mestra da jovem shogun e Sakyo, pai de Ietsugu, agora, monge budista com o nome de Gekko-in. Esse grupo deseja que Yoshimichi reine, caso Ietsugu morra. Só que Yoshimichi é envenenada e sucedida pelo irmão, já que a proibição de que homens fossem chefes de família tinha sido suspensa por Ienobu.
Manabe defende que um homem seja o novo shogun. Isso, claro, atrai a atenção negativa das velhas conselheiras de Tsunayoshi. Faz tanto tempo que homens não governam que a idéia parece absurda. Dentro do Ōoku há, também, uma disputa de poder. O problema é que Gekko-in (Sakyo) e seu valete, Ejima, não são raposas políticas como Manabe, eles não estão competindo pelo poder, ainda que estejam em situação privilegiada. Gekko-in continua apaixonado por Manabe e como pai da shogun tem prestígio e apoia o seu candidato. No entanto, quando tenta expressar opinião política, o que acontece uma única vez, é repreendido, por ela “política não é assunto para homens”. O jovem, na verdade, passa todo o volume esperando que a conselheira lhe lance um único olhar de afeto, que sorria para ele... Como Yoshinaga gosta de fazer esses homens sofrerem em Ōoku... Enquanto isso, a conspiração para derrubar Manabe, Gekko-in e Ejima, promovido a supremo camareiro do Ōoku, está em andamento. Manabe é arrogante demais para perceber que sua situação é a mais insegura possível e que seus adversários, Yoshimune entre eles, são na média muito mais inteligentes e centrados que ela.
É triste, mas os bons não se criam em um ambiente como o Ōoku. Gekko-in é uma boa pessoa, Ejima além de bom é um dos sujeitos mais honrados que já apareceram na história. E os dois terminam sendo destruídos pelo viúvo de Ienobu, que de bonzinho só tem a cara. Pois bem, através de Ejima são feitas algumas discussões bem interessantes. Já li em vários textos sobre shoujo mangá e yaoi, que as autoras e consumidoras desse tipo de material no Japão tendem a considerar (sexualmente) agressiva a presença de pelos nas personagens masculinas. E não falo somente de pelos pubianos e da legislação que os proíbe, ainda que ela seja sintomática de que pelos no corpo não são tão apreciados por homens japoneses, também. É raríssimo encontrarmos uma personagem em mangá feminino – especialmente se for protagonista – que tenha barba, bigode, pelos pelo corpo. Não lembro de nenhum.
Ejma é o inverso do modelo masculino ideal em um mangá feminino, ele é um homem peludo, pesado de corpo, feio. Ele parece mais uma personagem de mangá bara. Tipo urso, entendem? Pois bem, mesmo com a carência de homens, ele é rejeitado pelas mulheres. Elas têm nojo dele. A personagem, então, acaba entrando para o serviço de um Lorde e levando uma vida celibatária, assexuada mesmo. Sendo um homem correto, disciplinado e, sim, benevolente sem ser fraco, Ejima termina chegando ao topo da hierarquia do Ōoku, como supremo camareiro. Só que seu problema continua, ele tem vergonha de si mesmo e depila todas as partes do corpo que podem ficar à mostra.
É através de Ejima que os inimigos de Manabe articulam a sua queda. O código do Ōoku está sendo desrespeitado, afinal, a shogun é uma criança, não faz uso do harém. Os homens entediados recebem permissão de seus senhores – especialmente o viúvo de Ienobu – para na volta do templo passarem no teatro e, bem, alguns deles acabam voltando depois do horário e mantendo relações sexuais com as atrizes. Porque essa é outra questão levantada no volume. Da mesma forma que as mulheres foram banidas do Kabuki, em 1629, no universo de Ōoku, os homens não podem atuar nem no teatro NÔ, nem no Kabuki. Manabe, aliás, era uma artista de Nô. Só que como ocorreu com os atores do Kabuki real no século XVII e XVIII, as artistas são prostituídas ou se prostituem.
Shingoro, a artista mais importante da companhia de Kabuki mostrada no volume, é uma mulher especializada em fazer papéis masculinos. Ela é alta e elegante, mas está envelhecendo. Ainda assim, há muitos homens de famílias nobres que pagam para conversar com ela e ter uma noite de sexo. Alguns desejam nela o homem que a atriz interpreta no palco, disso, Yoshinaga deixa isso bem claro no volume. Ejima também se deslumbra por ela, mas cioso dos horários e do protocolo, nunca ficou até o fim para assistir nenhuma peça. Seus homens, os que servem Gekko-in, acham absurdo que os servidores do viúvo de Ienobu tenham tanta liberdade e eles, não. Assim, eles vão até Gekko-in é pedem que ele consiga uma “exceção”, para que possam assistir o final da peça e entrar fora do horário. Um deles sugere o interesse de Ejima por Shingoro e Gekko-in decide ajudar o seu fiel servidor. Nem preciso dizer que tudo é uma grande armação e que vai terminar mal para Ejima, Gekko-in, Manabe e até a pobre Shingoro. Mas não é a tragédia em detalhes que eu quero comentar.
Ejima nada faz com Shingoro. Ele fica tão emocionado que mal consegue falar. Shingoro, que é muito prática em relação ao que faz, seja atuar ou se prostituir, ouve a história de Ejima, a forma como ele foi rejeitado repetidamente, e desabafa que as moças que o rejeitam são donzelas que nunca viram um homem de verdade ou que se deixam enganar pelas imagens de Ukiyo-e (浮世絵), nas quais os homens são sempre sem pelos, sem barba, idealizados como personagens de mangá. Ejima é o mais próximo de um homem comum que eu já vi desenhado em um mangá feminino. Não sei se a autora está fazendo uma crítica direta à idealização, passando uma mensagem para suas leitoras, ou ilustrando que fantasia e realidade nem sempre se encontram. O fato é que Ejima dentro do universo de Ōoku é uma personagem das mais humanas. Mas, como pontuei, não existe lugar para os bons e os puros no Ōoku. Arikoto foi o único sobrevivente e ele sofreu muitíssimo.
A tragédia de Ejima, Gekko-in e Shingoro é grande. Temos inclusive uma visão detalhada das técnicas de tortura utilizadas durante o shogunato. Yoshinaga faz questão de explicar como cada tortura funcionava. Curiosamente, a polícia, os torturadores, são mulheres. Já os soldados, inexplicavelmente, continuam sendo do sexo masculino. Yoshinaga tem uma visão contraditória sobre essa questão. Em um mundo com tão poucos homens e mulheres governando, é inexplicável que os exércitos fossem masculinos. Mas quando Yoshimune entra em cena, e temos a grande reflexão sobre o absurdo do patriarcado, ela, uma guerreira, faz questão de frisar que homens são sempre mais fortes que mulheres.
Autores são contraditórios e Ōoku não é uma obra feminista em sua essência, ainda que traga muitas das discussões de gênero que façamos no meio acadêmico. Duvido que Yoshinaga não tenha lido nada, só que ela reitera algo que dentro do seu próprio universo é difícil de se provar. Yoshimune, agora já shogun, defende que: 1.as mulheres são melhores governantes e isso não é nada estranho se ela mesma cresceu vendo mulheres administrando com competência e é reconhecida como líder capaz; 2. a idéia de traçar a linha de descendência pelo pai é um absurdo, anti-natural, já que antes do DNA a mãe era sempre uma certeza, enquanto o pai uma presunção; 3. que homens são mais fortes e habilitados para o uso das armas que as mulheres e que um homem que não é mais forte que uma mulher, qualquer mulher, não o é porque foi mal treinado ou é preguiçoso. Trata-se, claro, de algo de pouca comprovação no social. E menos ainda em um universo como o de Ōoku... Mas, vá lá, até Yoshimune tem seus momentos pouco inspirados.
O fato é que por conta desse raciocínio, a nova shogun decide não abrir o Japão para o estrangeiro, suspendendo o decreto de Iemitsu. Ela teme que as outras nações tomem o Japão de assalto já que homens são sempre mais fortes... Engraçado é que no volume #1 – lembram que eu retomei? – a própria Yoshimune contesta a fala do capitão holandês que diz que não há mulheres entre eles, porque elas não suportariam a longa travessia marítima... Tsc... Tsc... Será que Yoshinaga mudou de idéia? O fato é que Yoshimune descobre nesse volume que mesmo os registros oficiais estão sendo alterados, datas, aparência do shogun, para que, caso o mundo volte ao “normal”, ninguém nunca venha a saber que mulheres governaram algum dia. Foi por isso que minha cronologia não estava batendo com a do mangá...
Outras questões de gênero levantadas no volume estão ligadas a essa distância cada vez maior do mundo patriarcal, mas ainda mantém várias de suas amarras. Shingoro é prostituída pela dona da companhia. Obviamente, ela não é uma prostituta qualquer, já que está no topo da hierarquia dos artistas já que faz o papel masculino principal. Pensaram Takarazuka? Sim, a reação da audiência feminina ao otokoyaku é a mesma. Só que sua patroa levanta a possibilidade, já que ela é tão requisitada, de que Shingoro possa engravidar de um homem importante. A atriz ri da idéia, afinal, ela se diz “velha”, mas no íntimo mostra muito desprezo pela maternidade. Ela não a deseja, ela não tem nenhuma inclinação para o cuidado das crianças, ela é uma atriz... ou não seria um ator?
Já Ejima acha as peças de teatro todas muito tolas, pois como acreditar em um mundo no qual um homem precise pagar por prostitutas. Para ele, trata-se de um sonho, de uma válvula de escape para mulheres que, sem possibilidade de casamento, precisam trabalhar arduamente para conseguir algum dinheiro e pagar por uma noite de sexo com um homem e possibilidade de uma gravidez. Falando em gravidez, Yoshimune tem suas herdeiras, aliás, ela não para de trabalhar nem quando está parindo e isso rende algum humor em um volume muito pesado. A shogun também parece pouco interessada em bebês, basta saber se são saudáveis. Só que, ao que parece, Yoshimune e sua mania de catar qualquer sujeito por aí, acabou produzindo uma filha mais velha que não parece somente feia, parece intelectualmente comprometida... Bem, bem, outro problema de Yoshimune é esse, ela não se preocupa em selecionar os reprodutores. Exclui os mais arrogantes, os que se dão muita importância, e prefere os humildes e feios. Só que inteligência conta muito...
Agora, o problema é ficar com um sentimento estranho: O que será de Ōoku quando Yoshimune se for? E se você, alma caridosa, conhece uma página com spoilers da série em alguma língua que eu leia, por favor, preciso dela urgente! Porque eu não sei o que acontece nos volumes #8 e #9 que saem em dezembro. Falando em lançamentos futuros, o Comic Natalie noticiou a revista literária Da Vinci do próximo mês trará dossiêr sobre Ōoku com entrevista com Fumi Yoshinaga e informações sobre o dorama e o filme. Queria muito poder ler isso, ou ver as imagens.
3 pessoas comentaram:
Shingoro e Ejima mereciam um abraço, coitados. Eu juro como não esperava uma conspiração vinda do consorte-viúvo, nem que ele estivesse macomunado com a Hisamichi. Aliás, será que ela participou da morte das duas irmãs da Yoshimune? Tive essa impressão.
Também não entendi essa lógica da Yoshimune. Como saber que homens sempre serão mais fortes que mulheres? Sendo ela uma guerreira, era de se esperar que ela ao menos tentasse montar uma tropa...
Queria muito encontrar pelo menos raws, mas o mesmo tempo não queria que a Yoshimune fosse embora. Acho que sofreremos no mesmo tanto de quando o Arikoto se foi.
Acho que as irmãs de Yoshimune foram mortas por Manabe. A primeira, pelo menos, deve ter sido. A outra, pode ter morrido por conta da hipocondria mesmo. ^____^
Morro de medo de Ooku. Toda vez que passo pela Amazon ou Book Depository, ele está lá, me olhando de cantinho de olho, tentando meu cartão de crédito.
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