quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Falando da Yuri no Dia da Visibilidade Lésbica


Maria-sama ga Miteru

Hoje, 29 de agosto, é dia da visibilidade lésbica e senti a necessidade de publicar alguma coisa. A “invisibilidade” é fruto do (pre) conceito e, principalmente, da idéia de que não existe sexo sem que exista um homem (*munido de um falo*) no meio da história. Daí, ou se nega que o lesbianismo exista de verdade; ou se atrela o amor entre mulheres a uma coisa passageira, ou fruto de um trauma; ou que duas mulheres (*bonitas*) juntas só existem para excitar os homens, como um convite para que o sujeito venha “brincar”, também. Não raro, quando se usa a palavra “homossexual”, as pessoas têm em mente somente os homens gays, excluindo as mulheres desse grupo.

Curiosamente, mesmo entre @s fãs de shoujo mangá – e eu não estou focando em outros grupos de fãs – há quem veja os mangás yuri e shoujo-ai como material para o público masculino. Com a proliferação de produtos – animes especialmente – para o público otaku masculino só com garotas, temo que essa idéia se fortaleça ainda mais. Por conta disso, decidi revisitar um texto antigo que escrevi para o Anime-Pró chamado “Passeando por Campos de Lírios – Conversando sobre Yuri e Shoujo-ai” (*não sei mais onde está dentro do site*) e fazer algumas reflexões. Esse post não é totalmente original, mas uma montagem com alguns acréscimos e correções. Quando escrevi a coluna não eram comuns os sites sobre yuri, especialmente em português, nem havia a abundância desses animes fanservice com elenco totalmente feinino. O momento é outro.


"Yuri" (百合) em japonês quer dizer lírio e passou a estar associado na cultura pop japonesa ao lesbianismo. Um dos melhores sites sobre yuri e shoujo-ai – e são poucos se comparados aos sobre mangás yaoi –, é do Yuricon, mantido pela competente Erica Friedman. De acordo com a página, o termo “Yuri” está associado ao mundo das lesbianas – reais ou imaginárias – faz muito tempo, mas ficou consagrado quando um redator de uma revista gay dos anos 1970 usou para as mulheres o termo "yurizoku" (百合族/tribo do lírio), enquanto a "barazoku" (薔薇族/tribo da rosa) se referiria aos homens gays. De qualquer forma, o termo só serve para dar nome a práticas que já existiam faz tempo. Em uma sociedade como a japonesa, na qual os papéis de gênero tendiam a ser rigidamente definidos, muitas vezes mesmo o mundo dos homens e das mulheres pouco se tocavam. Isso possibilitou o surgimento de uma cultura tipicamente feminina.


Foi esta cultura que possibilitou a criação de todo um mercado de quadrinhos produzidos por mulheres para um público de meninas, moças e mulheres. Somado a isso, temos a ausência da condenação religiosa, materializada entre nós pelo discurso cristão, às relações homossexuais em si mesmas. Nesse contexto, as amizades entre meninas, de caráter sexual ou não, eram, e ainda são, muito comuns. A grande pioneira na representação desses relacionamentos, antes do boom do mangá, foi Yoshiya Nobuko (1896-1973), autora das chamadas Hana Monogatari ( 花物語/"Lendas das Flores", 1916–1924). Seus contos e romances mostravam meninas adolescentes, estudando em colégio internos femininos. Nesse mundo restrito eram estabelecidos laços de solidariedade e relacionamentos afetivos. O material fez muito sucesso, porque conseguiu sintetizar o que significava “tornar-se” mulher, dentro dos grupos sociais mais privilegiados, em um tempo no qual o casamento heterossexual pouco tinha a ver com amor romântico ou felicidade. Maria-sama ga Miteru (マリア様がみてる) bebeu intensamente no material desta autora.

Hoje, os termos "yuri" e shoujo-ai" estão cada vez mais presentes na net e na boca dos fãs de anime e mangá. Ambos se referindo aos romances entre mulheres. Cada vez mais, assim como aconteceu com o yaoi, a tendência é que o termo yuri se torne soberano e não façamos mais velhas distinções como “shoujo-ai não tem sexo e Yuri tem sexo”. A fronteira entre os dois termos, aliás, é bem fluída, e desconfio mesmo se essa distinção não foi uma invenção do fandom ocidental. Um dia, paro para pesquisar isso. Obviamente há shoujo-yuri, josei-yuri, shounen-yuri e seinen-yuri. Há, também, material hentai nessa linha. O problema é quando as pessoas pensam em yuri como sinônimo de hentai ou material carregado de fanservice para garotos.


Como eu já sinalizei anteriormente, os relacionamentos entre meninas nos mangás estão presentes desde pelo menos os anos 1970. Se formos rastrear, podemos voltar lá no longínquo ano de 1957 e considerar Sakura Namiki (さくら並木), de Makoto Takahashi, como um precursor dos mangás yuri/shoujo-ai. Nele temos a escola feminina e o forte akogare (憧れ), que é a relação de admiração e devoção de uma aluna mais jovem pela sua senpai. O akogare, essa admiração intensa de um inferior (kouhai) por um superior (senpai) é, às vezes, tão forte que começamos a imaginar se não há algo mais. Mesmo imaginando que há “algo mais”, dentro do material japonês esse sentimento é admirado e pode se desdobrar em amor e sacrifício.

De qualquer forma, foi nos anos 1970 que os mangás yuri começaram a aparecer, ainda que muito timidamente. Ryoko Ikeda foi uma das autoras que ajudaram a dar visibilidade aos romances entre mulheres e a Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら) tem papel nisso. Mesmo que no mangá a heroína seja heterossexual, sua proximidade com outras mulheres era muito grande e o amor que as moças devotavam a Oscar, em especial Charlotte e Rosalie, era mais do que evidente. Há inclusive um momento da história, no qual Oscar lamenta não poder amar Rosalie, já que a moça lhe dedicava um afeto e devoção sem limites. Mas, em seu grande clássico, Ikeda não desenvolveu a questão, cortando qualquer possibilidade de romance para Oscar e Rosalie. Assim, o resto fica por conta da imaginação dos fãs da série.


Já em uma obra posterior Oniisama E... (おにいさま へ…), a coisa muda de figura e Ikeda retrata com muita ternura o romance entre duas adolescentes em uma escola feminina de elite. Conhecendo a obra de Ikeda, porém, não convém esperar por um final do tipo “e viveram felizes para sempre”. O relacionamento entre Saint-Just e Nanako não era o centro da história, mas parte de uma trama na qual o amor entre meninas – concretizado ou não – tinham grande importância. O anime, mesmo que tenha grandes qualidades, traiu a história original ao transformar o sentimento profundo de Nanako por Saint-Just em algo passageiro, quando Riyoko Ikeda em nenhum momento sugeriu que a menina esqueceu a amada.

Coube a Ikeda, entretanto, escrever uma das primeiras histórias adultas sobre a questão. No seu mangá curto intitulado Claudine...! (クローディーヌ・・・!). Passado na França da primeira metade do século XX, Ikeda mostra o drama de uma jovem que, por se sentir atraída por outras mulheres, não consegue se enquadrar, é abandonada pela amada, e termina se suicidando. Infelizmente, a tragédia aprece marcar esses primeiros materiais yuri/shoujo-ai feitos no universo shoujo.



Mas o primeiro mangá yuri de verdade, por assim dizer, foi feito por Yamagishi Ryoko. Ainda em início de carreira e com uma arte muito distante daquela que a consagrou em mangás como Hi Izuru Tokoro no Tenshi (日出処の天子), ela produziu Shiroi Heya no Futari (白い部屋のふたり) que traduzido poderia ser “o par ou o casal do quarto branco”. Neste mangá, datado de 1971, a autora recorre a vários elementos da cultura feminina recorrente nos shoujo e, antes disso, nos contos de Yoshiya Nobuko: o colégio interno estilo ocidental, a tomboy, a menina insegura, e, como era comum na época, a história se passa fora do Japão. No decorrer desse curto mangá, o que começa com animosidade e curiosidade, torna-se amizade, depois amor e termina (*claro*) em tragédia. Estavam lançadas as bases do shoujo-ai. Outro mangá yuri pioneiro foi Maya no Souretsu (摩耶の葬列) de Yukari Ichijo. Também em um volume, menos até, é um mangá de horror que começa com uma vendeta que se torna amor e, mais uma vez, termina em tragédia. Tanto Shiroi Heya no Futari, quanto Maya no Souretsu foram traduzidos para o inglês.


Interessante é que apesar de nos mangás os relacionamentos entre meninas ficarem explícitos, ainda que terminem em tragédia, nos animes shoujo - geralmente dirigidos por homens - eles são esvaziados de seu sentido original, ou apresentados como coisa passageira, coisa de menina que quando crescer, apesar de guardar com carinho o seu “primeiro amor”, se enquadrará nos moldes desejáveis da heterossexualidade compulsória. Vejam, não estou dizendo que isso não aconteça nos mangás, mas é como a coisa é apropriada pela animação e redimensionada ou modificada.

Se o pioneirismo coube aos anos 1970, outras obras levaram a questão adiante nos anos 1980, e de forma bem mais decidida e aberta como em Paros no Ken (パロスの剣). Este mangá, que se passa no imaginário Reino de Paros, em uma improvável Grécia Medieval. A desenhista é a consagrada Yumiko Igarashi e a história é de Kaoru Kurimoto. Paros conta a história de amor entre uma princesa e uma camponesa que, apesar de todos os obstáculos, terminam juntas, mesmo que o final permaneça em aberto. Já é um grande avanço, diante das tragédias da década anterior. Fora, que Paros no Ken lembra muito a Rosa de Versalhes, só que com Oscar largando André para trás e terminando com Rosalie. Não há como não perceber relação entre os dois materiais.


Os anos 1990 foram marcados por várias obras que retratavam romances entre meninas e mulheres de forma muito mais aberta e sem necessariamente um fim trágico. Em Sailor Moon (美少女戦士セーラームーン), ou de forma menos explícita, nos mangás de Shoujo Kakumei Utena (少女革命ウテナ) e Card Captor Sakura (カードキャプターさくら). De forma velada, ou não, apresentado como uma amizade mais intensa ou envolvendo sexo, visto como rito de passagem, tendo final feliz ou trágico, os relacionamentos entre mulheres estão sempre presentes dentro do shoujo mangá. Sailor Moon, com o casal Haruka e Michiru, supera e muito qualquer expectativa, afinal, elas são um casal e não há qualquer situação crítica à relação das duas. E mais interessante neste caso é que a relação está no anime e tudo é trabalhado de forma bem tranqüila se comparado com as nóias da TV brasileira. Se nos EUA, Michiru e Haruka viraram “primas”, aqui no Brasil tudo foi exibido sem censura na Cartoon Network.


Entre as fãs de shoujo, há uma explícita preferência pelo yaoi. Em alguns casos, a resistência ao yuri/shoujo-ai entre as fãs, principalmente, é imediata e não raramente a gente ouve um "Não curto essas coisas entre mulheres, não.". Nota-se que para muitas fãs, existe a idéia de que o yaoi é um hobby inocente, enquanto o yuri e o shoujo-ai podem soar quase como uma declaração de orientação sexual. Engraçado isso, pois há gente que nega o (pre) conceito, reclama da descriminação contra os mangás shoujo e da perseguição aos mangás com conteúdo yaoi, mas é capaz das mesmas posturas agressivas e/ou defensivas. No material yuri/shoujo-ai não dá para desmentir o fato de que realmente está ocorrendo um romance entre mulheres, ou no mínimo uma amizade que soaria suspeita para os padrões Ocidentais.


Um fenômeno que reforça a resistência é a apropriação das personagens de shoujo mangá (Utena-Anthy, Haruka-Michiro, Tomoyo-Sakura, todo o elenco de Maria-sama ga Miteru, etc.) por fãs homens que produzem material hentai muitas vezes carregado de violência e situações humilhantes. E como a oferta de material mais picante é limitada, muitas fãs de yuri e shoujo-ai acabam tendo como referência materiais shounen ou mesmo hentai que são muito mais fáceis de encontrar para download. Tudo isso, eu diria, é influenciado pelo preconceito arraigado na nossa sociedade, que vê a homossexualidade feminina – quando não sujeita aos fetiches tradicionais – como um problema, algo que deve ser silenciado e escondido. Quer algo mais subversivo e ameaçador do que mulheres que não precisam de homens para se divertir?

Uma das coisas que me incomoda no material yuri e shoujo-ai é a presença, em algumas obras, de uma representação muito rígida de papéis com a menina "machona" (*butch*) de cabelo curto, alta, forte e destemida, que ama a menininha pequena, meiga e de longos cabelos (*femme*). É claro que esse tipo de modelo pode ser encontrado na vida real, mas não representam de forma alguma a realidade como um todo. Parece, que o que está se estabelecendo é uma imitação do que acontece nos mangás yaoi, nos quais figuras como o uke e seme são quase universais. Engraçado é que nos mangás da década de 1970, pelo menos na representação visual das meninas, isso não ocorria. Mais recentemente, há algumas autoras que brincam com isso, colocando uma menina-butch na aparência, mas extremamente feminina, receptáculo de todos os estereótipos de gênero, e a femme como uma tomboy. Isso é mostrado em Maria-sama ga Miteru, na relação entre Yoshino e Rei.


Muitas pessoas associam essa caracterização do par lesbiano na cultura pop japonesa à influência do Teatro Takarazuka. Criado em 1914, o Takarazuka junta várias influências (teatro de revista, musical americano, Kabuki, Nô, etc.). Nele as mulheres representam tanto os papéis masculinos quanto femininos e recebem um treinamento muito rígido para incorporarem os maneirismos de gênero, já que as atrizes, ainda na sua formação, são designadas para serem homens ou mulheres e fazem o mesmo tipo de papel durante toda a carreira. Ainda hoje, a idolatria feminina em relação às atrizes do Takarazuka é imensa, principalmente em relação àquelas que fazem os papéis masculinos/otokoyaku. Interessante é que esse tipo de tietagem, que no ocidente soaria como homossexual, acontece também nos mangás e animes shoujo (ou não). Mas mesmo essa representação rígida de papéis "femininos" e "masculinos" não constitui uma regra.

Independentemente de qualquer convenção que me pareça boa ou ruim, o que vale é que o público japonês parece estar mais receptivo a esse material, ou eu, fã brasileira que depende da net, estou percebendo assim. Afinal, cresce o número de sites, listas de discussão e eventos centrados no material shoujo-ai e yuri. No Japão, a primeira revista exclusivamente focada em shoujo-ai e yuri, a Yuri Shimai, foi criada em agosto de 2003. Hoje, a outras publicações como, por exemplo, a Yuri Hime, Comic Lily, a Hirari e a Tsubomi. Veja que há uma defasagem de mais de 20 anos em relação à primeira revista yaoi/shonen-ai - a June que apareceu em 1978!!!. A Yuri Shimai, hoje extinta, trazia somente histórias com temática levemente yuri (**estou pensando em sexo explícito aqui**) e shoujo-ai e é voltada para o público adolescente. Outros mangás com temática shoujo-ai ou yuri aparecem esporadicamente em revistas mainstream como foi o caso de todos os que citei aqui na coluna. Hoje, por exemplo, o mangá de Maria-sama ga Miteru é publicado na tradicional Margaret.


Há muitos nichos de mercado inexplorados. Nos EUA, porque aqui no Brasil isso não existe mesmo, há editoras especializadas em publicar BL. Com a crise no mercado de mangás por lá, algumas migraram para a publicação digital. Eu tenho vários volumes de mangás BL de Fumi Yoshinaga, mas yuri mesmo por editora meinstream, só lembro de alguma coisa da Erica Sakurazawa saindo por lá. O que é publicado mais regularmente sai por editoras como a Yuricon. Felizmente, há muita coisa sendo traduzida pelos fãs e é possível ler shoujo/josei yuri, assim como material yuri que saiu em revistas seinen ou em outros canais, caso você procure. Continuo sugerindo uma visita direta ao site do Lililicious, ainda que o material que elas traduziram circule em outros sites, e dentre as listas de discussão – todas estrangeiras – recomendo a Yuricon, que continua bem ativa apesar das novas redes sociais. Há sites brasileiros que se especializaram em yuri, como o KAS – kono ai Setsu, que merecem a sua visita, também.

3 pessoas comentaram:

Eu não vou fazer um comentário muito extenso, mas me lembrei de um elemento curioso ao ler esse trecho: "Uma das coisas que me incomoda no material yuri e shoujo-ai é a presença, em algumas obras, de uma representação muito rígida de papéis com a menina "machona" (*butch*) de cabelo curto, alta, forte e destemida, que ama a menininha pequena, meiga e de longos cabelos (*femme*). "
Bom, lembra daquele filme, "Alguém muito especial"? Um que passava na sessão da tarde. O curioso é que ele brincava com isso: a personagem da Mary Stuart Masterson tinha esse perfil. E era apaixonada pelo personagem do Eric Stoltz. O detalhe é que ele nem imaginava que ela pudesse estar apaixonada por ele porque se ela tinha esse perfil, obviamente era lésbica. Tanto que ele até entrega isso numa conversa com o pai: "minha melhor amiga é homossexual".
Não, não era, mas ele só descobre isso no final. O filme está aqui: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=0cJ1QDwv9oY

Excelente matéria Valéria, adoro os seus textos. Enquanto lia lembrei de um filme inglês recente, The Secret Diaries of Miss Anne Lister, de 2010, o filme se passa no século 19 e é baseado na vida real de Anne Lister, que escrevia sobre sua vida em seus diários em forma de um código secreto. Anne Lister era uma mulher rica que mantinha relacionamento amorosos com outras mulheres e claro que escandalizou a sociedade onde morava. É um ótimo filme, naquele estilo de dramas de época.

Lady, vou atrás do filme, não conhecia.

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