Este final de semana finalmente terminei de assistir a versão da BBC de Mansfield Park feita em 1983. Esta foi a primeira adaptação do romance de Jane Austen para a TV e contou com seis episódios de aproximadamente 55 minutos. Por ser mais longa, ela consegue evitar a maioria dos problemas que as outras duas adaptações – 1999 e 2007 – têm, afinal, condensar e adaptar uma obra longa em duas horas é um exercício bem difícil. Tudo é muito corrido e mutilado. A coisa boa dessa versão é que a narrativa consegue ser coerente e as críticas sempre ressaltam a fidelidade ao livro. Fora isso, as atuações são muito boas. O elenco é o ponto forte dessa versão de Mansfield Park.
Eu confesso que nunca li Mansfield Park integralmente e o motivo é que não consigo ter empatia pelas personagens como acontece com outros romances de Austen. As duas adaptações para filme também não conseguiram me segurar (*embora esteja disposta a encarar a coisa para poder comparar*). Edmund Bertram já não é uma personagem muito atraente, e com Jonny Lee Miller, interpretando, acaba sendo menos ainda; no caso do filme mais recente, impossível ver Fanny Price em Billie Piper. Não dá mesmo e já falei sobre isso em outra resenha de filme de época estrelado por ela. Essa versão de Mansfield Park, entretanto, conseguiu me prender e me fazer gostar de Fanny Price. Peguei o livro algumas vezes só para poder comparar com o que estava assistindo e, bem, é isso que acontece quando a adaptação é boa.
Para quem não conhece a história de Mansfield Park, em linhas gerais é a seguinte. Fanny Price vai morar com os tios e os primos em Mansfield Park aos 10 anos. Sua mãe é irmã de Lady Bertram e fez um casamento ruim, já que o pai de Fanny tornou-se inválido para o trabalho no mar e é um alcoólatra. Quem leva a menina para Mansfield Park é outra irmã de sua mãe, a Mrs. Norris, que é casada com o pároco residente. Desde o início o status de Fanny é complicado, já que ela não poderia ser criada como uma igual em relação aos primos e primas, mas não seria também uma criada. Na casa, somente seu primo Edmund trata Fanny com real afeto desde o início e a menina cresce muito apegada ao primo e mantém ativa correspondência com o irmão, William, que está fazendo carreira na marinha. Chegada ao final da adolescência, Fanny é sempre prestativa e amável, mesmo sendo sempre lembrada da sua condição por sua cruel Tia Norris.
Enquanto seu tio está em Antigua cuidando dos negócios da família, a chegada de um casal de irmãos à vizinhança – Mary e Henry Crawford – agita a vida em Mansfield Park. As duas primas de Fanny, Maria e Julia, caem de amores por ele. Fora isso, o primo mais velho de Fanny, o indisciplinado Tom, decide aceitar sugestões e montar uma peça de teatro (Lover’s Vows) considerada escandalosa por Edmund. O rapaz teme pela virtude das irmãs e de Mary Crawford, e acredita que seu pai não iria gostar da idéia de ter suas filhas atuando, mesmo que por passatempo. Só que Edmund é voto vencido já que a idéia é do agrado de todos, inclusive de sua Tia Norris. A peça cria situações para que a virtude dos participantes, especialmente de Maria Bertram, que mesmo noiva flerta com Henry Crawford, em risco, além de aproximar Edmund e Mary Crawford. Fanny assiste o desenrolar de toda a situação em silêncio, mesmo sofrendo de amores por Edmund e recriminando internamente o comportamento pouco adequado de Maria e Mr. Crawford.
A volta do tio impede a montagem da peça. Mais tarde, Henry Crawford decide se declarar para Fanny e a resistência da moça, considerada injustificável já que o rapaz é rico, faz com que o Sir Thomas a envie de volta para “casa” como uma forma de refletir sobre sua condição e o quanto está sendo ingrata. Fanny, no entanto, se mantém constante e as máscaras de todos os envolvidos – Maria, Henry, Julia, Mary – acabam caindo e mostrando para todos que a protagonista tinha conseguido ver os problemas de caráter que os demais ignoravam. A constância de Fanny é recompensada com seu retorno para Mansfield Park e seu casamento com o primo, Edmund Bertram.
Talvez seja uma falsa impressão – dado o humor peculiar de Jane Austen – mas acho que Mansfield Park é o romance mais moralista da autora, ou aquele que mais ri da moral da época. É exatamente esse apego ao comportamento tradicional que acaba tornando Edmundo o mocinho mais chato, menos atraente, de Austen. Já li discussões bem acaloradas sobre ela, muita gente o considera hipócrita e, talvez, ele seja mesmo. Ele critica os irmãos por causa da peça, mas acaba participando dela para “proteger” Mary Crawford. Tão cioso da moral convencional, ele não consegue ver o que se passa debaixo do seu nariz, como a dubiedade de caráter dos Crawford e das suas próprias irmãs que não se importam muito com as convenções sociais da época. E, pior, se Fanny se deixasse guiar por ele, teria casado com Henry Crawford.
Contrastando com o irmão Tom, interpretado com grande simpatia nessa versão pelo belo Christopher Villiers, Edmund parece sem vida, inexpressivo. Tom faz um monte de bobagens, verdade, mas parece fazer tudo “de coração”, não para agradar A ou B. Mas aí temos que lembrar que Edmund é o caçula e tem muito mais o dever de agradar do que o mais velho, afinal, ele vai herdar muito pouco. Nem acho que seja calculado, simplesmente, ele acaba se adequando bem ao papel e dará um pastor muito chatinho. O que mais me incomoda em Edmund é o fato dele acreditar que pode moldar as mulheres ao seu bel prazer. Ele acredita que pode reformar Mary Crawford, ele acha que Fanny é criação sua. Na verdade, ainda que Fanny tente agradá-lo, ele é feito de bobo pelas irmãs, por Mary, e por Henry. O que torna o Edmund nessa versão um pouquinho mais palatável é a ótima interpretação de Nicholas Farrell. A segurança e o compromisso do ator com a personagem. Defender alguém tão chato, não deve ser fácil.
Mas são as interpretações o forte dessa versão. Anna Massey é espetacular como Mrs. Norris, uma mulherzinha mesquinha que tem toda aquela chatice da mãe da Elizabeth Bennet, mas nenhuma gota da sua simpatia. Ela despreza Fanny, puxa o saco das sobrinhas (*especialmente de Maria*), tenta tirar vantagens da irmã e do cunhado, e controla a vida dos empregados dos outros. A atriz passa toda a antipatia em seu gestual e olhar. É, com certeza, uma das personagens mais marcantes da série e, talvez, a personagem mais antipática de Jane Austen. O elogio também vale para Bernard Hepton como Sir Thomas, aliás, ele foi o pai de Ema na versão de 1996. Eu consigo ver na intepretação de Hepton toda a preocupação paternal da personagem (*dentro das suas condições de produção, claro*) por Fanny. Ele é, na verdade, o único pai que ela teve. E quando o pai biológico pinguço mal educado da protagonista entra aparece, a gente agradece que ela tenha um Sir Thomas na vida dela. A cena em que ele pressiona Fanny (Sylvestra Le Touzel) a casar com Henry Crawford é uma das melhores de toda a série e o choro da protagonista é realista ao extremo. Já a Lady Bertram de Angela Pleasence é bem marcante, pois ela parece estar interpretando uma pessoa drogada em tempo integral. Já vi a atriz em outros papéis e ela criou uma Lady Bertram absolutamente genial, sempre falando baixo e arrastado, cochilando no sofá e carregando o cachorro para lá e para cá. figuraça.
Outra interpretação muito marcante é a de Jackie Smith-Wood como Mary Crawford. A personagem é bem humorada, crítica e inteligente lembrando bastante Elizabeth Bennet, só que seu caráter é duvidoso. Jackie Smith-Wood oferece uma Mary cheia de vivacidade e interage muito bem com Nicholas Farrell (Edmund) e Sylvestra Le Touzel (Fanny). Mary nunca deixa de expressar seu desagrado com a carreira escolhida por Edmund, ela não finge a este respeito. Ela também parece genuinamente simpática para com Fanny. O problema é sua devoção ao irmão e a crença de que o maior erro de Henry e Maria não foi o romance extraconjugal e a fuga, mas a falta de discrição. E, claro, ela culpa Fanny por não ter aceito o casamento com seu irmão, salvando-o da desonra.
Aliás, há quem realmente acredite que Fanny pudesse “salvar” Henry, reformá-lo. Sinceramente? Só pela minissérie fica difícil acreditar que Henry se apaixonou por Fanny. Não sei se é a interpretação de Robert Burbage, que nunca consegue me passar confiança sobre seu amor por Fanny, ou é coisa do livro mesmo. O fato é que quando ele cisma de fazer Fanny se apaixonar por ele só por crueldade, eu acredito. É algo plausível. Agora, quando ele volta no capítulo 5 e diz que se apaixonou, foi difícil de digerir. E não terminei a série mais cedo por causa disso. As cenas dele se dizendo apaixonado me pareceram tão falsas... Só quando ele vai atrás de Fanny na casa dos pais dela, eu consigo acreditar um pouco... Já os olhares dele para Maria, a bela e talentosa Samantha Bond (*ela está em Downton Abbey*), são muito reais. Há química entre os dois, já com Fanny...
Falando em Fanny, eu gostei da atuação de Sylvestra Le Touzel. Ela começa muito retraída e vai desabrochando ao longo da série. Ela não é bonita, mas consegue passar grande simpatia e nos ganha pelas suas virtudes. Ao contrário da Billie Piper que parece totalmente fora do lugar como Fanny Price, Le Touzel se apossa da personagem, lhe dá identidade. Eu torci por Fanny e cheguei a conclusão de que dentro das limitações impostas à personagem, ela é a que tem o status mais frágil de todas as heroínas de Austen, ela mostra ter grande caráter. Como o elenco é muito bom, Fanny consegue brilhar sempre. Não há, como ressaltei acima, química entre Fanny e Henry, mas suspeito que é coisa do livro, porque mesmo em relação a Edmund, não há emoção no desenlace.
Sabemos que Fanny o ama e Le Touzel é muito competente em expressar isso em gestos e olhares, mas o final é muito morno. Edmund casa com Fanny porque, bem, ela parece estar ali mesmo... Não há paixão da parte dele, há convencimento das virtudes da prima. Eu não considero esse final pouco realista, ele só é frio mesmo. Para Fanny é uma recompensa e o problema não é ela. Edmund é que é, repito, o mocinho mais sem sal de Jane Austen, o mais chato e mentalmente limitado. E nem a excelente interpretação de Nicholas Farrell pode mudar isso. Outros destaques, eu diria, Jonathan Stephens, como o simpático e infeliz Rushworth. As cenas dele com Fanny, que sabe, como nós, que ele está sendo traído pela noiva, Maria, são muito bons. E tem Mr. Yates com seu figurino que me lembrou de cara o Sir Percy de Scarlet Pimpernel. E aquele cabelo? Impossível olhar para o sujeito sem rir...
De resto, o figurino é muito bonito e elegante. A reconstituição de época é primorosa. Acredito que é até superior a de Orgulho & Preconceito 1980. Eu não me arrependi de comprar os DVDs. Agora, preciso de coragem para encarar as versões que eu sempre largo e comparar com esta. Ah, sim! Há uma crítica que já vi a esta versão e que precisa ser comentada. No livro, Fanny pergunta ao tio, Sir Thomas, como está o tráfico de escravos. E ninguém responde, todos se calam. Curiosamente, essa pequena cena é interpretada de várias formas. A maioria vê no silêncio um constrangimento em relação ao comércio humano.
Olha, poderia ser muita coisa e nada. Ignorarem Fanny era normal e não há nenhuma outra menção à escravidão no livro. Eu procurei, fiz a busca na copia digital e não há nada que coloque Mansfield Park como um romance abolicionista ou a personagem Fanny como alguém contra a escravidão. O povo imagina coisas demais, ou está trabalhando com material extra-livro, neste caso, o contexto da época e as cartas de Jane Austen. O que quero dizer é que a omissão de uma pequena cena não compromete, nem arranha a adaptação. Eu recomendo a série de 1983 para os fãs de Mansfield Park, porque foi a versão que mais se aproximou do livro e tem um elenco de primeira linha.
5 pessoas comentaram:
Valéria,
sua resenha e seu esclarecimento sobre o tema escravidão em Mansfield, estão ótimos! Tomei a liberdade de mencioná-los no Jane Austen em Português.
Curiosidade: Sylvestra Le Touzel e Nicholas Farrell, fizeram um casal no filme, este sim sobre a escravidão, Amazing Grace.
Creio que você precisará de coragem para o Persuasion dessa série!
abs, raquel
Valéria,
sua resenha e seu esclarecimento sobre o tema escravidão em Mansfield, estão ótimos! Tomei a liberdade de mencioná-los no Jane Austen em Português.
Curiosidade: Sylvestra Le Touzel e Nicholas Farrell, fizeram um casal no filme, este sim sobre a escravidão, Amazing Grace.
Creio que você precisará de coragem para o Persuasion dessa série!
abs, raquel
Raquel, não entendi a parte do Persuasão. Bem, Persuasão e Emma tiveram versões no início dos anos 1970. Eu tenho as duas baixadas aqui e comprei o DVD de Persuasão para ter o original. Há também Razão & Sensibilidade dessa época. Esse eu já li críticas sérias e o figurino não me agradou mesmo.
A versão que é considerada ruim dessa leva é Northanger Abbey. O visual é tão ruim que eu não tenho coragem de correr atrás, não. E tem uma versão de Razão & Sensibilidade que eu não vi.
Eu vi o Amazing Grace e comentei aqui no blog. Vi ao escrever a resenha que eles estavam no filme, mas lembrar dos dois, lembro, não. ;-)
Valéria,
peço desculpas pelo comentário duplicado - o aviso era que eu havia digitado errado o captcha.
Eu comprei o box que tem os filmes dos anos 1980 e Persuasão de 1970, que considero terrível. Northanger Abbey também é na mesma linha Persuasão mas eu o achei divertido. Talvez por gostar do ator Peter Firth.
Le Touzel e Farrel são o casal Thornton e estão neste link. Vou procurar sua resenha de Amazing Grace.
abs
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