segunda-feira, 14 de maio de 2012

Comentando Escrava Isaura – Parte 2 e Final



Já faz quase um mês, talvez até mais, que terminei de assistir A Escrava Isaura. Por isso mesmo, tive que mudar o início desse texto aqui, pois me perguntava se ainda iria escrever mais sobre a novela... Acho que só voltarei à Isaura se alguma notícia, como a novela no Canal Viva ou o bloco de reprises de clássicos no horário de Malhação, se concretizar. Só refrescando a memória de vocês, a primeira parte dos meus comentários sobre os 5 DVDs de A Escrava Isaura está aqui. Depois de concluí-los, tive que repensar algumas coisas, uma delas é que realmente houve um lamentável o massacre durante a edição dos 100 capítulos da trama original. Não vejo mal algum em enxugar uma novela, há sempre aquelas cenas inúteis e em Escrava Isaura teríamos a repetição sem fim dos assédios e maldades de Leôncio e das perseguições de Rosa. Poderia, sim, ficar cansativo, mesmo com míseros 100 capítulos. O problema é que cenas muito boas também foram cortadas. Como fã do Tobias, queria mais dele com Isaura. Fora as cenas mal cortadas e aquelas que dificultaram a compreensão. Mas vamos por partes.


Falando primeiro de Leôncio. Eu realmente acredito que Gilberto Braga tinha a intenção e desenhá-lo como um sujeito com problemas mentais. O pai dele, Comendador Almeida, era mau, ignorante, machista, mentiroso, um nojo. Além de ser, claro, o maior responsável pela situação de Isaura, já que recusou o pedido da esposa de alforriá-la. Ele, a meu ver, era muito mais vilão, já que sempre esteve no controle de seus atos. E, pior, termina feliz e reconciliado com todos no fim da trama... Já Leôncio demonstra desde os primeiros momentos em cena que não era muito bom da cabeça. Eu retiro qualquer crítica á atuação de Rubens de Falco, pois ele mostra bem nas sutilezas de sua interpretação quando Leôncio está mentindo, quando está falando a verdade, e quando não tem noção do que está fazendo, ou está surtando (coisa que se torna cada vez mais frequente conforme a trama avança). Ou Leôncio tinha ausências ou sofria de TDA (Transtorno de Déficit de Atenção), sem H (Hiperatividade), já que ele era tão ou mais preguiçoso do que a média dos senhores de escravos da época.

ão se trata de relevar as maldades do vilão, ele mereceria, hoje, manicômio judiciário, mas de levar em conta que, ao contrário do pai, em alguns momentos ele não tinha consciência do que fazia. Ele vivia no mundinho dele e a coisa vai se tornando cada vez pior com o passar dos capítulos e a rejeição de Isaura aos avanços dele. Vide os delírios de Leôncio quando Isaura está fugida. O recurso de usar um filtro que imitava vidro quebrado foi muito inteligente, porque mostrava bem a percepção distorcida que o sujeito tinha do mundo. Destaque para o delírio dele se imaginando chicoteando Isaura amarrada no tronco, ela gargalhando, e, depois, ele mesmo sendo chicoteado por ela. Sadomasoquismo festivo... Os chiliques de Leôncio, a falta de noção em relação aos seus aliados, as alterações de comportamento. Agora, só em novela mesmo – e das seis, e da ditadura – ele não teria violentado Isaura... Há toda uma tensão sexual, a violência implícita e explícita, os diálogos de duplo sentido, mas ele não chega muito perto de estuprá-la, não. Se bem que louquinho do jeito que ele era, sei lá se não cairia em lágrimas e abandonaria a cena do crime antes de concluí-lo.


O ridículo – e depois tem gente que reclama de Hadashi de Bara Wo Fume que se assume pastelão desde o início – é que apesar de toda má fama de Leôncio, de todas as maldades e canalhices, o povo acreditava nas mentiras dele. Tobias, coitado, nem para andar com uns capangas. OK, ele era honrado, um homem bom, mas custava usar pelo menos dois neurônios de vez em quando? Assim, claro, ficava fácil para o vilão. E toda a seqüência da morte do rapaz e de Malvina, a esposa de Leôncio, foi muito mais cruel e tensa do que eu me lembrava. É a mais dramática de todas as mortes de novela que eu me lembre, e uma das mais tristes, também, porque são duas personagens queridas indo embora ao mesmo tempo e deixando a heroína desamparada. Afinal, Tobias foi capturado quando ia para o cartório selar a liberdade de Isaura, já que ele e o irmão de Malvina, Henrique, tinham obtido a carta de alforria que o Comendador assinara. E que aventura por conta de um papel, imagino isso sem os cortes... Ora, o herói foi sozinho e, claro, os jagunços de Leôncio o pegaram. Ele foi torturado por Leôncio, que como todo bully era covarde, e fracassou em sua tentativa de fuga. Enfim, não existe morte em novela que se compare, aliás, na dramaturgia – novelas, seriados, filmes – não consigo me lembrar de nenhuma que passe perto. É angustiante. Mas ninguém desconfia de Leôncio, claro! E a escrava que testemunha tudo precisa se calar.


Eu também superestimava o Álvaro (Edwin Luisi) nas minhas vagas lembranças da novela. Ele não era mais racional que Tobias, aliás, parecia ser muito mais sensível, e chorar na frente de Leôncio não atrairia a simpatia do vilão, muito pelo contrário, nem dado a grandes reflexões sobre suas reais possibilidades de conseguir sucesso no resgate de Isaura. Ou seja, se Leôncio quisesse, tinha acabado com ele, também... e fácil! Voltando ao romance de Isaura e Álvaro, os cortes mal feitos prejudicaram principalmente a parte em que ela aparecia, já que tínhamos que poder acompanhar direitinho Isaura superando a dor e se apaixonando por ele. No final, tudo ficou meio corrido demais e truncado. E Álvaro também tinha lá suas fixações, porque um sujeito poderoso como ele ficar correndo atrás de uma desconhecida, só mesmo em novela, livro romântico ou certos mangás... Ele é rejeitado, e rejeitado de novo, mas decide seguir insistindo com Isaura. Como ele é descrito como um dos homens mais ricos do Brasil, é estranho para todos ver o sujeito se rebaixando a conviver com gente muito pobre e, claro, visivelmente cheia de segredos. Mas os dois formam um par muito bonito. Eu prefiro o Tobias, já deixei isso claro, imagino que se assistisse a novela na época que passou, eu iria ficar muito arrasada, mas o Álvaro é um cara absolutamente do bem, muito menos comprometido com questões moralmente complicadas do que Tobias, que era ainda um senhor de escravos.

Mas os cortes prejudicaram principalmente as tramas menores. Quando Taís, irmã de Tobias, finalmente consegue fazer com que o lindinho do Henrique compreenda que a ama, já que ela vende as joias da família para conseguir levantar o valor absurdo que Leôncio exige que o pai de Isaura pague por ela, o entendimento do romance dos dois é prejudicado. A personagem de Ítalo Rossi, recém entrada na trama, quer que Henrique case com sua irmã, Aninha, a estreante Myriam Rios, já que somente assim receberia a sua fortuna. Ele vai tentar manipular o pai do rapaz, o Conselheiro Fontoura. Não vemos nada disso, porque a tesoura trabalhou muito mal. Daí, quando Henrique confronta o pai, a cena parece fora do lugar, pois a última cena consistente entre o Conselheiro, Taís e Henrique tinha sido a do velho pão-duro reconhecendo o valor do ato da futura nora ao recomprar suas jóias. Fica parecendo injustiça com o velho... Enfim, a Globo poderia ter oferecido a sua novela mais famosa com uma qualidade digna dela, mas preferiu tesourar impiedosamente a partir do 2º disco.


E, antes do fim, é preciso falar de Rosa, interpretada de forma magistral por Léa Garcia. É inevitável prestar atenção no Leôncio de Rubens de Falco, o grande vilão da trama, mas Léa Garcia oferece uma interpretação carregada de rancor e inveja para a escrava que odiava tanto Isaura que seria capaz de tudo para prejudicá-la. Rosa não é cega ao sistema, mas ela precisa de um alvo, a escrava branca que todos valorizavam por causa dessa característica. E Léa Garcia se move como uma gata, sinuosamente, se esgueirando aqui, ronronando ali, mostrando garras e dentes se necessário. Não surpreende que a odiassem tanto. Ao mesmo tempo, ela é também uma voz de resistência. Ela não se faz de vítima, nem admite esse lugar. Ela luta por melhores condições para si com as armas que tem, o seu corpo e sua inteligência. Infelizmente, claro, tal personagem, desprovida de ingenuidade, perceptiva da dubiedade de Leôncio, carregada de luxúria, manipuladora, não poderia ser aliada, mas vilã. Em A Negação do Brasil, Léa Garcia diz que a morte de Rosa, no fim da novela, foi comemorada com fogos em certos bairros. Sintomático da falta de reflexão, Rosa era fruto do sistema, e ela nunca esteve em condição de fazer escolhas muito virtuosas...

Mesmo com os cortes Escrava Isaura tem muitas qualidades e mostra bem as divergências sobre a escravidão dentro das classes dominantes do Brasil. No entanto, é um material – e o original era assim, então desculpo o Gilberto Braga – que elimina quase que totalmente a ação das pessoas comuns, algumas delas ex-escravos ou negros, em prol do fim da escravidão. Eles são passivos, ou reagem de formas pouco pensadas, vide as atitudes do escravo André. Na nova versão da Record, algo foi feito nesse sentido, introduziu-se um quilombo, mas, claro, o resultado não foi tão bom, afinal, não há dúvida para mim em relação à qualidade do autor e do elenco. Fora, claro, que Escrava Isaura de Gilberto Braga foi feito durante a Ditadura. Isso somente já é um peso enorme, pois até proibido de usar a palavra escravo ele foi em certo momento...


Enfim, todos os escravos que tem relevo na trama, salvo Rosa, claro, seriam capazes de se sacrificar por Isaura, mas, não, por sua própria liberdade. E o absurdo todo residia no fato de alguém como Isaura – branca e refinada – pudesse ser obrigada a fazer os piores trabalhos. Em uma sociedade racista como a nossa, a mensagem de Bernardo Guimarães continuava bem atual em 1976/1977, e o horror dos sofrimentos da jovem mobilizaram a nação. No entanto, será que avançamos muito hoje? Semana passada, foi adiada de novo a votação da PEC do Trabalho Escravo (PEC 438/2001), simplesmente, porque a bancada ruralista não vê a questão como prioridade e porque, como disse o deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), “Se eu, na minha propriedade, matar alguém, tenho direito a defesa. Se tiver bom advogado, não vou nem preso. Mas se der a um funcionário um trabalho que será visto como trabalho escravo, Minha esposa e meus herdeiros vão ficar sem um imóvel. É uma penalidade muito maior do que tirar a vida de alguém. A espinha dorsal da Constituição brasileira é o direito à propriedade”. Curiosamente, a grande imprensa, calou-se sobre esta frase... Qual a diferença entre o pensamento de homens assim e de pessoas como a personagem Leôncio ou seu pai? Por que – e ontem foi 13 de maio – a população não se comove com uma questão tão absurda como o fato neste nosso país ainda termos gente escrava? Talvez, porque não são como Isaura: linda, culta, branca, pura. Por essas e outras, a Escreva Isaura continua muito atual... Vergonhosamente atual.

1 pessoas comentaram:

Gostei muito do seu texto sobre a Escrava Isaura, acho muito pertinente a comparação com o Brasil de hoje. Também adiquiri a novela pela Globo Marcas e me senti roubada quando percebi os cortes mau-feitos na novela, afinal havia assistido quando passou a muitos anos no Vale a Pena Ver de Novo e me lembro de cenas que gostaria e esperava rever, mas é claro que a Globo não se incomoda com o consumidor assim como o Brasil não se incomoda com o trabalho escravo.

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