domingo, 15 de abril de 2012

Comentando O Príncipe do Deserto (Black Gold)



Passei boa parte da minha tarde assistindo o filme O Príncipe do Deserto, que deveria ter ficado como Ouro Negro mesmo, já que o título nacional nada pouco revela sobre o filme que é muito bom. Tão bom, que eu me arrependo de não ter ido ao cinema assistir, já que estreou em algumas poucas salas aqui em Brasília. Confesso que meus motivos para assistir ao filme, do qual ouvi falar somente esta semana pela resenha da revista Isto é, foram quatro: a direção de Jean-Jacques Annaud, o fato de ter um recorte histórico pouco abordado, Mark Strong e Antonio Banderas. Sim, eu gosto muito dos dois. Já estava preparada para terminar o filme e dizer “É bom, mas é chato (*e longo*)”. Afinal, é isso que eu penso da maioria dos filmes do Annaud, vide A Guerra do Fogo e O Nome da Rosa, mas me enganei, as duas horas passam voando. Outra coisa, não acredite em resenhas que dizem que Mark Strong é o vilão, pois não existe vilão neste filme. Mas vamos ao resumo e já me desculpo pelo texto lotado de spoilers.


Algum lugar do Oriente Médio, década de 1930. Dois reis, Amar (Mark Strong) e Nesib (Antonio Banderas) estão firmando um tratado. Amar precisa entregar seus dois filhos, Saleeh e Auda, como penhor em troca da paz com Nesib, que se compromete a respeitar a Faixa Amarela, uma região que precisa permanecer como “terra de ninguém”. Amar diz ao filho caçula que não chore, pois não se deve gastar água com lágrimas. Nesib, em seguida, é mostrado lamentando com um Ocidental a pobreza e o atraso tecnológico dos árabes, os surtos de doenças contagiosas, e a morte de mulheres no parto. Ele mesmo, aliás, perdeu a esposa dessa forma. Em seu palácio, Saleeh e Auda (*que menininho me lembra o Harry Potter. Muito fofo.*) são tratados como filhos por Nesib e o caçula mantém forte amizade com a filha do sheik, Leyla. No entanto, por conta dos tabus culturais e religiosos, os dois são separados.



O tempo passa, Auda (Tahar Rahim ) se torna uma espécie de “nerd do deserto”, seguido pelo olhar de Leyla (Freida Pinto), que o observa do harém por trás das treliças, amando-o à distância enquanto ele é protegido e ridicularizado pelo irmão mais velho, pelo irmão da princesa e por Nesib. A situação muda quando americanos descobrem petróleo no deserto. O problema é que o ouro negro está exatamente na Faixa Amarela. Nesib não hesita muito em romper o tratado com Amar e explorar o petróleo, construindo escolas, hospitais, bibliotecas e usufruindo de um luxo nunca imaginado por ele. Só que Amar se sente traído e coloca-se contra a presença de infiéis em terras muçulmanas. Com a morte de Saleeh, o conflito é inevitável e Auda se torna uma peça de suma importância para o futuro das tribos do deserto e a paz ou a guerra na região.




O filme Black Gold toca em questões muito interessantes, como o início da exploração do petróleo no Oriente Médio, sem passar a mão na cabeça de ninguém. Árabes, explorados, ou não, não são perfeitos. Os ocidentais podem ser exploradores, mas têm coisas a oferecer, também. Eu não consegui informações consistentes sobre o romance de 1957 que serviu de base para o filme – South of the Heart: a novel of modern Arabia –, mas acredito que se inspirou na formação da Arábia Saudita. Filmado todo no Catar, com locações belíssimas, a película contou com muito dinheiro árabe na produção. Infelizmente, pelo que tenho lido, o filme não fez sucesso. Eu realmente não entendi o motivo. Será que por não ter mostrado uma história “real”? Será que por ser uma produção multinacional? Será que as duas cenas de romance/sexo entre Leyla e Auda pesaram contra o filme? O Hollywood Reporter lamenta que a personagem de Freida Pinto fique boa parte do tempo no harém, mas, sinceramente, isso estava plenamente de acordo com o contexto.




Há várias questões que eu gostaria de comentar do filme. Infelizmente, vai ser tudo cheio de spoilers... mais do que a minha média e desde já eu me desculpo. Só que eu realmente gostei do filme e queria poder falar sem parar dele. Mas vamos começar pelos dois reis em conflito, Antonio Banderas e Mark Strong. Ambos estavam muito bem nos papéis, cada um com o seu estilo de interpretação. E muito bonitos, diga-se de passagem. Só que, em comparação, Mark Strong estava muito mais imponente, talvez porque a personagem dele tivesse aquele misto de honra e tragédia o acompanhando. Agora, verdade seja dita, ele parecia árabe de filme ou romance Harlequin mesmo, porque ele me lembra tudo, menos alguém que seja do deserto...



Mas, enfim, Nesib é liberal, progressista, preocupado com o bem estar de seu povo, mas ambicioso e traiçoeiro. Os americanos querem usá-lo e ele acredita que pode usar os americanos. Trata-se de uma troca. Ele também usa os filhos de Amar e eu me questiono se alguma vez ele chegou a amá-los de verdade. Auda, especificamente, é tratado por ele com certo desdém e complacência, alguém que seria fácil de controlar e usar. Nesib fala manso, mas parece sempre ameaçar, excelente o trabalho de Banderas. Só não vi ele se preocupar em mudar a forma restritiva de vida imposta às mulheres. Parece que nesse quesito, a situação parece estar muito ao seu gosto. Já Amar é religiosamente conservador e vê qualquer influência ocidental, como uma ameaça, a ponto de impedir remédios estrangeiros entre no país. Cercado de teólogos ultraconservadores, ele se deixa influenciar por uma visão muito fechada da fé islâmica. Ao mesmo tempo, Amar parece o líder perfeito, honrado, justo, alguém que despreza o dinheiro e que diz que tudo se conquista com sangue e amor. Só que conforme o filme anda percebemos que ele não trata com respeito e afeto o filho que teve com outra esposa, Ali (Riz Ahmed); que não deu o apoio combinado à tribo da mãe de Auda e Zaleeh, os Zamiri; que chantageia o filho usando o Corão, e que joga Auda no campo de batalha sem nenhum preparo. Enfim, os dois sheiks não são lá muito flor que se cheire.



Só que o herói improvável do filme é Auda. Talvez, a coisa já estivesse sinalizada e eu não percebi, afinal, o príncipe do cartaz, com barba e porte heróico, não parece com o adolescente de óculos do início do filme. O irmão dele, sim, tinha aquela pinta de herói, do tipo que é tão óbvio que eu já estava pensando que o filme seria um saco de aturar... Mas eis que a coisa vira e Auda se torna o centro das atenções. Uma cena legal entre os dois irmãos é quando Auda – que deve ter sido tomado como refém com uns cinco anos – diz que não se lembra mais do rosto do pai e pergunta como ele é. Zaleeh, que era praticante de falcoaria, diz “Ele é como este falcão”. Curiosamente, Mark Strong parece mesmo com o imponente falcão neste filme. O romance entre Auda e Leyla também é interessante e as poucas cenas entre os dois ou são bonitas, ou são sexies. O casamento entre eles foi político, mas a inteligente Leyla manobrou o pai para que lhe desse como esposa, depois, manobra o relutante Auda para que ele consume o casamento. Afinal, apesar de toda a questão entre os pais dos dois, eles se amavam e deveriam, sim, aproveitar a situação. Só seria mais sensual a cena se quando Leyla abrisse a abaya, ela estivesse sem nada. Aquela roupinha de odalisca ficou muito estranha, bem kitsch, mas, no geral, a cena foi bonita. Já a dos dois no carro foi muito além do que eu imaginaria que colocariam em um filme desses, ainda mais com censura 12 anos...



É quando Auda é enviado como emissário de paz até seu pai que sua lealdade é testada e o rapaz amadurece. É interessante ver o processo e a interação com o meio-irmão Ali, um médico amargo e debochado, uma das melhores personagens do filme. Ali sofre pela rejeição do pai e pela situação arcaica do reino. E tudo sugere que ele é intelectualmente brilhante, além de ter a língua muito afiada... Talvez se Auda tivesse continuado com o pai, seu destino fosse o mesmo, privado da satisfação de sua sede de saber. Juntos e cada vez mais amigos, os irmãos são enviados para atravessar uma região do deserto chamada “A Casa de Deus”, lugar difícil de cruzar e marcado pela morte. É curioso que Amar diz ao filho que ele seria somente usado para distrair as tropas de Nesib, enquanto ele cercaria a capital do inimigo sem que ele percebesse. Só que o coitado é enviado para o inferno mesmo. Auda percebe o quanto o pai é atrasado, ainda que o admire. Discorda do uso de prisioneiros como soldados e tem que lidar com a constante possibilidade de revolta. Agora, o legal de tudo é ver que ele consegue vencer batalhas usando a inteligência. Camelos contra tanques, eu de cara imaginei que não havia jeito... Todos esperavam que ele morresse, mas quase milagrosamente, e sem dar um tiro ou empunhar uma espada ele mesmo, Auda vira as situações. Mais legal ainda é que tudo é crível. Eu quero rever este filme com o meu pai, porque ele entra na categoria “para assistir com o pai”.

Toda a seqüência do deserto, com a transformação do menino em homem, é excelente. Só não acredito que camelos não foram feridos ou mortos no processo, pois a impressão era de que tudo era muito real. E, dentro das suas condições de produção, nosso príncipe Auda era muito justo. Ele é contra a escravidão, e entra em conflito com uma tribo - os Beniziri, acho - que capturava e escravizava gente de outras tribos. É isso que vai dar ao personagem o apoio de vários outros grupos, as tribos mais rústicas do sul, em sua jornada de volta ao reino de Nesib. Curioso é que ainda que não cumpra a Bechdel Rule, achei as duas personagens femininas de destaque do filme muito interessantes. Leyla não queria estar no harém, ela foi obrigada à reclusão. Culta, ela sonhava com alguém como ela, no caso, Auda, e não um príncipe orgulhoso. Só não sabemos se Auda depois de chegar ao trono faria algo pelas mulheres da capital, que viviam reclusas e na rua só de burka.



A outra personagem feminina de destaque é Aicha, feita pela atriz etíope Liya Kebede. Ela aparece como uma escrava capturada, tem a pele escura e rosto e cabelos descobertos. Os traficantes de escravos dizem que ela é Zamiri, como a mãe de quem Auda mal se recorda. Os Beniziri falam mal das mulheres Zamiri, porque lutam e montam como homens e não se cobrem com o véu. Auda, que não concordava com a escravidão, quer libertá-la. E, claro, os traficantes de escravo estavam tramando para mata-lo e ainda xingam a mãe de Auda, dizendo que todas as mulheres Zamiri eram putas, por nãos e cobrirem. Não preciso dizer que xingar mãe de herói nunca é algo saudável, e neste contexto sangue e areia, muito menos. Mas o fato é que as mulheres Zamiri realmente são guerreiras e a libertação de Aicha e um incidente místico (*que não vou comentar, mas é muito importante*) vai fazer com que ele ganhe o apoio da tribo. Fora isso, pinta um clima entre Aicha e Auda, mas, surpresa, ela acaba indo embora, pois não aceita o harém, é livre, vive em igualdade com os homens de sua tribo e não parece ver isso em um futuro com Auda. Eu adorei a guerreira orgulhosa e tal, uma personagem que eu chamaria de feminista mesmo, mas dentro do climão do filme até torci para que Auda tomasse uma segunda esposa... Mas voltando ao ponto, o filme fez um painel bem interessante do que era ser mulher nessa Arábia fictícia: havia as mulheres que gostavam (ou acreditavam gostar) da vida reclusa, as que se submetiam por falta de opção (Leyla), as que morriam de tristeza (a mãe de Auda) e as que viviam em uma estrutura mais igualitária (Aicha).





Enfim, apesar de muitas tragédias, muito sangue, muitos camelos mortos, Auda vence no final. Sua visão progressista, mas ainda assim apegada aos princípios do Islã lhe permite costurar as alianças necessárias. Sua vitória miraculosa, faz o resto do trabalho. É muito boa a cena em que ele confronta o sogro, Nesib, que o considerava tão inofensivo, e lhe pergunta o que ele faria consigo mesmo se estivesse em seu lugar. Nesib diz que mandaria matá-lo, mas muito rápido. ^____^ Só que Auda é um sujeito melhor, mais inteligente, e que vê as qualidades de Nesib. Assim, ele acaba se tornando o representante do reino junto à empresa texana exploradora de petróleo. Eu realmente recomendo o filme, seja porque é capaz de fazer um painel do que deve ter sido o surgimentos de vários desses principados que vivem do petróleo, seja por ter um monte de personagens interessantes, seja porque eu nunca vi um nerd tão heróico e competente. Todo mundo zoava com o pobre Auda no início, míope e desastrado, que ele deveria aprender a lutar. Mas lutar para quê? Ele fez um estrago pavoroso sem saber atirar ou lutar espada, se ainda tivesse essas competências, ele ganhava a guerra sozinho. Príncipe do Deserto poderia se chamar Nerd do Deserto, esse, sim, seria um título justo.

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