domingo, 29 de abril de 2012

Comentando Cairo 678 (Egito, 2010)



Ontem assisti ao filme egípcio Cairo 678. Não era minha intenção, mas depois que comecei, não consegui parar mais. O filme estreou em circuito restrito aqui no Brasil e eu estava curiosa em dar uma olhada, afinal, Cairo 678 abordava uma questão de muito interesse para alguém como eu, a denúncia da situação de assédio sexual constante que as mulheres sofrem no Egito. Alguém poderia dizer que aqui, também. Não está errado, ou não teríamos a preocupação de criar vagões separados para mulheres em metrôs e trens, só que, ao que parece, a questão no Egito é bem mais dramática, pois a coisa parece atingir níveis “epidêmicos”, por assim dizer, e as questões culturais e religiosas terminam inibindo as denúncias. Daí, o filme ter sido saudado como corajoso e recebido vários prêmios. Mas vamos para a sinopse:


678 conta a história de três mulheres que se cruzam por causa da questão comum do assédio sexual. Fayza, uma funcionária pública, casada, religiosa e com dois filhos, sofre assédio sexual constante na sua ida para o trabalho no tal ônibus da linha 678. Além do estresse e da humilhação permanente, Fayza e o marido passam por sérios problemas conjugais e não conseguem arcar com suas contas. A outra mulher é Seba, rica, com seus trinta e poucos anos, ela é casada com um médico. Seu marido é amoroso e gentil, mas o casamento dos dois vai por água abaixo depois que ela é atacada por um grupo de sujeitos nas comemorações de rua depois de uma partida de futebol da seleção do país. Como o marido não consegue salvá-la, ambos ficam traumatizados. Só que Seba é impedida pela família de dar queixa, afinal, ela nem foi estuprada! Já o marido se afasta dela quando ela mais precisava dele, deixando-a sozinha com a sua dor. Seba depois decide montar um grupo de ajuda para mulheres e é isso que permite o encontro com Fayza. A terceira mulher é uma jovem de classe média alta, Nelly é filha de uma professora universitária e que está noiva de um rapaz que quer ser comediante stand-up. Um dia ela é atacada na rua e reage. Sua mãe e seu noivo entram na confusão e o caso vai parar na justiça, só que devido ao escândalo, Nelly passa a ser pressionada a retirar a queixa. Enfim, trata-se de uma sociedade que não vê o espaço público como um espaço para as mulheres e deixa isso claro das maneiras mais cruéis.



Um dos trunfos de 678 é certamente abordar uma situação tristemente universal. Eu já sofri assédio em ônibus lotado no Rio e entendo perfeitamente a angústia da protagonista, que passava por isso todos os dias. Ela preferia andar ou tentar pegar um táxi pirata a ter que sofrer a humilhação diária. Só que seu salário não dava para táxi, o marido a acusava de estar gastando o pouco dinheiro da família, e seus atrasos constantes geravam tantos descontos em seu salário que mal dava para pagar a escola dos filhos. É por causa do seu drama que ela procura o grupo de Seba que faz três perguntas às mulheres: Já foi assediada sexualmente? Quantas vezes? Como você reagiu? Seba estimula as mulheres a reagirem, olharem nos olhos de seu agressor, denunciarem. OK. Só que Fayza começa a reagir, mas ganha gosto ao perceber que com o alfinete que prende o seu véu ou um pequeno canivete pode causar dor e dano aos tarados. O problema é que a coisa começa a sair de controle...



Já Nelly se revolta com a situação que lhe é imposta. Trabalhando em um call center de banco, ela é estimulada pelo supervisor a aceitar cantadas e tentar “seduzir” os clientes. Ela reage e é chamada de má funcionária. A mãe a educou para buscar fazer o que é certo, mas quando o seu caso vira um escândalo, já que é a primeira mulher na história do Egito a levar um caso de assédio sexual a ir parar na justiça. Todos pedem que ela pense na família, na mãe e no noivo. Ela é constrangida a se calar e isso torna sua vida muito amarga. Em um determinado momento, antes de conhecer Sela, ela pergunta para a mãe por que ela a educou para acreditar na justiça e perseguir seus ideais, se quando ela decide fazer isso é forçada a calar. É um filme muito incomodo.



Só que conforme Fayza vai agindo na linha 678, a polícia é chamada a interferir. Uma personagem muito interessante do filme é o inteligente detetive que decide investigar a fundo o caso dos ataques. Ele não concorda com o que a mulher assediada está fazendo, mas ele sabe que o sujeito ferido tem culpa no cartório. Eu achei uma das personagens mais interessantes do filme. O sujeito – alto, gorducho, e meio grosseiro – parece a caricatura do policial burocrático, que só quer bater ponto, mas em ação é surpreendente. Em meio a um sistema corrupto, ineficiente e hipócrita, o cara conseguir manter e manter vivo o seu senso de justiça, nem sempre usando de muita gentileza... Ele merecia um filme solo e seu drama familiar poderia ter um pouco mais de tempo.



O mais importante é que o detetive se solidariza com a vítima, não com o agressor, coisa que os outros colegas policiais não conseguiam fazer (*e os comentaristas da matéria da CNN, também*). Aliás, a cena da delegacia, depois do ataque sofrido por Nelly, é terrível e poderia acontecer mais ou menos igualzinha no Brasil ou em outros países de 3º Mundo. O policial responsável aconselha a não registrar a queixa, diz que tem uma filha, também, mas que levar o caso a público é humilhar a família. Recrimina o noivo da moça por não tomar conta dela... E a loucura maior é que o caso só poderia ser registrado em uma delegacia central e quem tem que levar o preso é a família da moça... Assim, surreal, da mesma forma que da primeira vez em que Fayza reage, ela é tratada como louca e agressiva por todos os homens do ônibus e tem que descer da condução. Mas quando a justiceira começa a agir, opera-se um milagre, os homens prontamente deixam de bolinar as mulheres com medo de serem a próxima vítima. Levar uma facada – mesmo que não seja profunda – na virilha deve doer e causar muita paura. :P Outra situação surreal é que basta gritar ladrão para que todo mundo ajude, mas quando é um caso de assédio sexual, ninguém se mexe.



Enfim, o filme não é perfeito, longe disso, mas cumpre bem sua missão. O problema é que ele toca em muita coisa ao mesmo tempo. O drama do policial é grande demais para ser tratado em poucos minutos. Eu simpatizei tanto com ele que nem me importei muito quando o filme vira uma espécie de policial em algumas cenas. A situação do ensino público e privado no Egito, também, fica meio que na periferia e renderia ele mesmo um filme. Mesmo gente muito pobre como Fayza e o marido preferem colocar os filhos em uma escola particular (*assim, como em muitas periferias do Brasil*), só que as crianças são submetidas a humilhação pública, porque os pais atrasam a mensalidade. É um negócio tão cruel que fica difícil acreditar que isso ocorra, mas eu acredito.



Uma coisa que o filme registra bem é como a situação de assédio constante pode resultar em paranóia, depressão e outras doenças. As três mulheres, por exemplo, decidem virar “justiceiras” e passam a procurar pelos assediadores para se vingarem deles. O próprio policial as repreende dizendo que elas não são o Batman. Seba deveria se tratar e, não, ser uma organizadora de grupo de ajuda. Ela não tinha equilíbrio para aconselhar ninguém e o filme mostra isso muito bem em várias cenas. O diretor também se esforça em mostrar que a sociedade como um todo, oprime as mulheres, tirando-lhes a voz, não lhes dando segurança. O diretor até ousa criticar a política de repressão sexual, pois em dois momentos coloca o filho de seis ou sete anos de Fayza e seu marido assistindo mulheres seminuas na TV. O marido de Fayza em uma das brigas lhe diz que se casou com ela somente para poder fazer sexo e um dos agressores diz que só ataca mulheres, porque não pode ter a sua... Veja bem, em uma cultura que coloca as mulheres como objeto e o sexo como algo central a situação não poderia dar em outra. E veja que é o mesmo tipo de cultura que temos aqui no Brasil, tirando, para a maioria, os impedimentos de contato sexual com o outro sexo.



Trocando em miúdos, o filme não passa a mão na cabeça dos homens, mas mostra que seu comportamento agressivo não é somente fruto de escolhas pessoais, mas de uma estrutura cultural e religiosa que legitima certos atos. O filme até mostra uma “dama do lotação” egípcia, a mulher que mesmo quase que completamente coberta  sentia tesão em ser bolinada no ônibus. Sim, essa questão também está lá! E isso depois de Fayza ter uma crise e acusar mulheres como Nelly e Seba de serem culpadas por religiosas como ela serem assediadas, afinal, elas não usam véu, saem sozinhas (*porque querem, não porque precisam*) e usam roupas apertadas. Jogar mulheres contra mulheres é fundamental para garantir que o estado de opressão se perpetue. Mas não pensem que o filme reforça isso, ele só expõe a questão para depois jogá-la por terra.



O filme de Mohamed Diab – diretor e roteirista – é corajoso ao abordar um problema que parece muito sério no Egito. Tão sério que uma das coisas curiosas na época da tal “revolução” que derrubou Mubarak, as mulheres estavam festejando o fato de que não estavam sendo assediadas na Praça Tahrir pelos seus companheiros de protesto. Obviamente, a coisa não durou muito, segundo várias notícias. O fato é que houve uma pesquisa feita em 2008 (*que eu lembro de ter repassado por aí*) que apontou que independente da idade, condição social, de se cobrirem dos pés à cabeça ou usarem roupas ocidentalizadas, 98% das estrangeiras residentes no país e 83% das egípcias diziam ter sofrido alguma forma de assédio. O incidente com Nelly – e, infelizmente, não achei mais detalhes – foi baseado em um caso real que fez com que as leis sobre assédio sexual se tornassem mais duras.



O que está descrito aqui, nessa matéria da CNN, bate com o que Diab colocou em seu filme, e os comentários dizendo que é tudo mentira (*ou quase*), também batem direitinho com o que é mostrado na película. Assim como uma das personagens, Nelly, foi acusada de levar seu caso à justiça para difamar o país, o diretor também foi e teve que “se explicar” dizendo que estava falando de um tema universal e não queria comprometer a imagem do Egito... Por aí você tira o tamanho do problema. Aliás, parece que isso lá é muito comum, qualquer critica a alguma situação nacional problemática, especialmente quando se aplica às mulheres, termina resultando em necessidade de explicações e desculpas. Basta olhar o caso da feminista Nawal el-Saadawi, acusada até de herege e presa, ainda que defenda (*até nas mais absurdas situações*) que todas as situações miseráveis vividas pelas mulheres no país estão dissociadas do islã... ou, pelo menos, do islã que ele diz ser o verdadeiro.



Enfim, Cairo 678 é muito bom. Há quem diga que o filme pegou leve, mas eu realmente não preciso de nada mais pesado que isso. Foi a minha primeira experiência com o cinema egípcio e eu gostei muito. Comparando com o cinema iraniano, ele até pode ser mais realista em certos pontos. Por exemplo, por exigência legal, até meninas usam véu em filme iraniano e as mulheres nunca tiram o hijab. Em Cairo 678, Fayza tira o véu em casa como o marido e os filhos, coisa que toda muçulmana religiosa deve fazer. O filme, claro, cumpre a Bechdel Rule sem dificuldade e eu o qualificaria de filme feminista, ainda que dirigido e roteirizado por um homem, porque ele coloca mulheres reais e seus problemas em tela, assim como a sua busca de justiça e a solidariedade entre elas. Recomendadíssimo. A página oficial do filme é esta aqui.

3 pessoas comentaram:

O Egito antigo era a civilização, mais avançada em relação aos direitos da mulher na antiguidade. As egípcias tinham direito a herança, a ter um emprego, não precisavam casar virgens ( na verdade elas nem precisavam casar) e tinham direito a ocupar cargos no governo.
Como um país que era tratava igualitáriamente suas mulheres pode mudar tanto? É no mínimo assustador .
que Netjeru ( o antigo Deus egípsio, os outros Deuses eram faces de Netjeru) tenha pena dos rumos que sua civilização anda seguindo.

Bem, há uma distância muito grande entre o Egito dos Faraós - e devemos levar em consideração as variações dentro de um período de mais de 3000 anos - e o Egito de hoje que não guarda mais que a localização geográfica em comum.

quanto aos direitos das mulheres, há controvérsias. Afinal, temos Creta e outras civilizações que provavelmente parecem ter sido bem mais igualitárias.

0la. como voce conseguiu assistir? nao encontro.ass karine

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