Nas duas últimas semanas me concentrei em assistir Downton Abbey. A série do canal britânico ITV já vai na terceira temporada e tinha sido muito recomendada pela minha amiga Natania. De novo, assim como no caso de Aya de Yopougon, fiz meio que pouco caso (*Desculpe, Natania, geralmente você acerta nas suas sugestões!*). Não gosto muito da época, essas duas primeiras décadas do século XX (1901-1920), prefiro séries inglesas de época baseadas em livros, e, apesar de ter baixado, fui empurrando com a barriga. O que me chamou a atenção e me obrigou a assistir foi uma matéria da Folha de São Paulo que dizia que o “The Economist comparou 'Downton Abbey' à crise de domésticas no Brasil”. Bem, se me obriguei a assistir Eduardo VII, poderia tentar assistir a primeira temporada de Downton Abbey, que nem era tão longa assim. O problema é que não consegui parar e assisti direto a 1ª e a 2ª temporadas, mais o especial de Natal. Em uma resenha, eu não conseguirei escrever tudo o que preciso, então, serão, pelo menos, dois posts comentando o seriado.
Downton Abbey é uma série criada por Julian Fellowes e é focada na fictícia propriedade no distrito de Yorkshire, seus donos e empregados, suas relações e as transformações pelas quais o mundo e a Inglaterra estão passando durante o reinado de Jorge V (*o pai do rei gago de O Discurso do Rei e filho de Eduardo VII*). A primeira temporada começa em 1912, com o naufrágio do Titanic, e segue até 1914, início da I Grande Guerra. A segunda temporada se inicia em 1916 e mostra as mudanças que a guerra trouxe, encerrando em 1919. E temos o especial de Natal que segue até o Ano Novo de 1919-20. Como toda série inglesa que eu tenha assistido, há uma grande preocupação com minúcias e detalhes: figurinos, locações, automóveis, protocolo, etc. Só nesse aspecto Downton Abbey já é bem interessante. Mas quem são as personagens? Do que se trata a história em si?
O protagonista da série é o Conde de Grantham (Hugh Bonneville) e dono de Downton Abbey. Ele é casado com Cora (Elizabeth McGovern), uma americana que trouxe dinheiro suficiente para salvar a propriedade. O casamento não foi por amor, já que a personagem de Bonneville precisava de uma esposa rica, mas os dois terminaram se apaixonando. Em uma sensação de “deja vu”, eis que o casamento só produziu três filhas – Mary, Edith e Sybil – e a propriedade e o título só poderiam ser herdadas por um herdeiro do sexo masculino. Lembram de Orgulho & Preconceito? Pois é, as leis inglesas realmente eram uma maldição como é dito no caso de Sherlock Holmes chamado O Pé do Diabo. Para piorar, o pai do Conde tinha conseguido incorporar legalmente o dinheiro de Cora aos bens da propriedade (*mulheres casadas não tinham direito à propriedade*). Assim, quando Lorde Grantham morrer, suas filhas e viúva teriam uma queda considerável em seu nível de vida. Imagine a situação! Depois alguém ainda tem a capacidade de escrever que os feminismos nada fizeram para melhorar a condição das mulheres...
Tudo arrumado para que Mary se casasse com um primo e tudo continuaria em família. Só que o tal parente, Patrick, morre no naufrágio do Titanic. Depois de tentar em vão uma saída legal, o Conde é obrigado a mandar buscar um primo em terceiro grau, o advogado Matthew Crawley, de Manchester. Quase um desconhecido e vivendo em um mundo de classe média, a mudança é um choque para ele e sua mãe. Cora e a sogra, a espetacular Dame Maggie Smith, se unem para tentar obter uma saída jurídica, ao mesmo tempo em que tentam empurrar a teimosa Mary para um conveniente casamento com Matthew. Só que os dois se estranham. A segunda filha, a desengonçada Edith, tenta se aproximar em vão do rapaz. Já a caçula, Sybil, está mais preocupada com política, igualdade social e os direitos das mulheres.
A primeira temporada acompanha a adaptação de Matthew, a relação dele com Mary, o amor que cresce entre os dois apesar de tudo. Por exemplo, a moça tem ciúmes do respeito e afeto que o pai começa a nutrir pelo rapaz, “o filho que nunca teve”. Há, também, o embate entre duas mulheres geniosas e dominadoras, Violet, a mãe do Conde, apegada às tradições, avessa à tecnologia (*luz elétrica, telefone, ...*), e Isobel (Penelope Wilton), que é enfermeira treinada e militante de várias causas sociais, como a reforma do hospital local. Só que Lady Violet a vê como uma rival, alguém que quer mudar as coisas que deveriam continuar no mesmo lugar. No capítulo final da série surge a possibilidade do nascimento de um herdeiro para Downton, um filho temporão do Conde e sua esposa. Tal acontecimento acaba fazendo com que a relação de Mary e Matthew volte quase que à estaca zero.
Já na ala dos empregados, o lugar mais atraente da casa, habita uma miríade de criaturas interessantes. Temos Gwen, a housemaid que sonha em se tornar algo mais, como secretária. Mr. Carson, o mordomo, que vive para a família do Conde e é mais cioso da velha ordem do que Lady Violet. Mrs. Hughes, a governanta, que se pergunta se fez a escolha certa em abrir mão do casamento para viver em função de uma família que não é sua. Mrs Patmore, a competente e mal humorada cozinheira, com o andar da temporada descobrimos que ela está ficando cega. William, o tímido footman (*serviçal... eu não consigo achar um correspondente adequado em português. Lacaio não serve.*), que sente saudade dos pais amorosos e preferia ser cavalariço, já que gosta de animais, mas sua mãe imagina que ele poderá se tornar mordomo um dia. Branson, o motorista irlandês e socialista, que acaba conquistando o coração de Lady Sybil e causando um grande escândalo na segunda temporada.
Temos ainda Daisy, criada que ocupa a mais baixa hierarquia dentre os serviçais domésticos, mas tem talento para a cozinha. William a ama, mas ela prefere Thomas. Sim, se alguém pode ser chamado de vilão em Downton Abbey é Thomas. Orgulhoso, mesquinho, invejoso, sempre cobiçando a posição de valete (*criado pessoal de um homem nobre ou muito rico*) ou algo mais, ele espezinha William, faz intriga e tenta sabotar os sonhos alheios. Sua parceira nessas ações é Miss O’Brien, a criada particular da Condessa. Juntos eles são capazes de uma série de pequenas e grandes maldades que vão atingir a vida de várias pessoas, desde a família do Conde até os outros serviçais. Falando nisso, chegamos à Mr. Bates e Anna.
Bates (Brendan Coyle) serviu com o Conde e salvou-lhe a vida na II Guerra Guerra com os Boers. Bates foi ferido na guerra e manca de uma perna, chega à Downton no primeiro episódio para ser valete do conde atraindo a desconfiança de Mr. Carson, que acredita que ele está abaixo das exigências do cargo, e a inveja de Thomas que desejava a posição. Ele e O’Brien conspiram para desgraçar Bates, mas os próprios segredos da personagem já são problema suficiente. Anna, a primeira housemaid, se apaixona por ele, que tenta afastá-la em vão. Não vou entregar mais spoilers, até porque provavelmente vou ter que falar bastante de Bates em uma resenha da segunda temporada, mas eu gosto muito dos dois. Brendan Coyle, na verdade, passa aquela imagem de homem do povo honrado e trabalhador. É assim em Norte & Sul e em Downton Abbey ele faz papel semelhante, mas com menos ódio, por assim dizer.
Enfim, Dowton Abbey é muito interessante como retrato das mudanças sociais aceleradas por um período conturbado. Já se bastaria como tal. As duas temporadas são muito precisas nesse aspecto retratando bem a luta de classes, o desprezo que muitos da nobreza sentia por qualquer um que precisasse trabalhar (*inclusive Matthew*), a inabilidade de pobres e ricos em lidar com as mudanças. O que o the Economist apontou de semelhanças com o Brasil está corretíssimo. Apesar de não termos nobreza de berço, tivemos escravidão, e uma aristocracia (*e mesmo classe média*) que se achava no direito de explorar os menos favorecidos. Agora, exatamente por conta da escravidão, existe a questão da cor. Isso não está em Downton e imagino que muita gente alienada assista a série, simpatize com os empregados, mas não consiga ver que aqui no Brasil o mesmo acontece, só que a doméstica não ruiva ou loira, mas nordestina (*com todas as marcas do “antes de tudo um forte”*), negra ou mulata. Aí, claro, a exploração é legítima. O pensamento de muitos é semelhante ao de Lady Violet que acusa sua criada pessoal de “egoísmo”, porque ela decide largar o emprego para casar e “ter sua própria vida”. Como pode uma coisa dessas? Mas a faxineira que trabalha aqui em casa contou algo semelhante, quando avisou a outra patroa que iria abandonar o emprego, porque, bem, arrumou quem lhe pagasse melhor e mais perto de casa. Foi chamada de “egoísta”, afinal, como a patroa viveria sem ela? Tsc... Tsc... Tsc...
Se o painel social não for suficiente, assista Downton Abbey por Maggie Smith. Toda a minha frustração de vê-la subaproveitada em Harry Potter desapareceu. Em Downton Abbey, ela está soberba com sua língua que corta e afaga. É, de longe, a melhor personagem. Merece todos os prêmios. Outro que está muito bem é Hugh Bonneville. Prefiro o ator como vilão, vide Daniel Deronda, mas ele está perfeito como o Conde. O que me espantou muito é perceber o quanto ele e o Colin Firth estão parecidos nessa fase da vida. Até a voz! Bonneville nunca foi galã, mas aos cinqüenta anos ele passa uma dignidade e elegância muito grande. Ele e o Colin Firth poderiam ser intercambiáveis em uma série como Downton Abbey. E ambos são muito competentes.
Mas tenho algumas coisas a criticar. As três personagens menos simpáticas da primeira temporada são criaturas estigmatizadas. Os dois maiores vilões são pobres e mesquinhos. Para piorar, Thomas é homossexual. Aliás, a cena mais caliente da primeira temporada é dele com um duque. E aqui, no Brasil, ainda discutimos beijo gay... Só que sua perfídia vem muito do problema com sua orientação sexual. Sem querer ser militante, mas se você só tem uma personagem gay, qual a necessidade de coloca-la como vilã? Já O’Brien é a típica mulher feia e mal amada. Poderiam ter pego uma bela atriz para o papel, mas a escolha foi proposital, ela é feia por dentro e por fora. Como Downton Abbey não é uma série maniqueísta, ela tem seus momentos humanos, mas, de novo, foi uma escolha infeliz.
Já Edith – que depois se recupera na segunda temporada – é desengonçada, mesquinha e invejosa, ela olha para Mary e procura formas de prejudicar a irmã. Só que Mary, que é extremamente cruel com a irmã e outras pessoas, é colocada sob uma luz favorável, é bonita, e somos levados a gostar dela. Edith parece escolhida a dedo para ser odiada. E, mais uma vez, é deliberadamente feia se comparada com as irmãs. Os pais são abertamente parciais, olham para ela com pena, Mary roubou-lhe o rapaz que amava (Patrick), mas é Edith que se ferra. Para tornar a coisa mais caricata, ela é filha do meio! E quando termina a primeira temporada, estamos todos sendo pressionados a odiá-la, afinal, ela revelou a indiscrição seríssima da irmã (*sem spoiler... "Poor Mr. Pamuk!"*), tornando meio que inviável seu romance com Matthew, além de criar um escândalo capaz de arrastar o nome da família para a sarjeta...
Outra coisa curiosa, é que o Conde é o bom patrão. Assim, bem ao molde dos fazendeiros de novela da Globo. Ele é cioso de sua posição, de seu nome, mas é aquele homem com bom coração, sempre disposto a ajudar e perdoar. Claro, e isso é mérito de Downton Abbey, temos a crítica imediata, ainda que de forma tímida através de Branson, o chofer. Ele aponta que mesmo sendo um bom patrão, o Conde é representante das classes superiores, do grande capital, e, claro, para ele é muito fácil ser bom quando se tem as rédeas do sistema em suas mãos. Mas talvez não por tanto tempo... Aliás, pensava que Sybil seria somente uma feminista de salão, bancada pelo dinheiro do pai, mas as coisas não são bem assim... Outra pequena falha da série é que não se fala de quem recebe a I Guerra com festa. Fala-se de patriotismo, de jovens que querem lutar sem ter muita noção do inferno que é a Guerra, mas, não, da recepção festiva que a I Guerra teve, especialmente, em círculos aristocráticos como os da família do Conde.
Acredito que já escrevi demais. Recomendo a série. A primeira temporada tem sete episódios com média de 50 e poucos minutos. Até fiquei feliz por não ter assistido em 2010, porque, afinal, é quase uma no de espera por uma nova temporada... Acredite, a gente assiste sem perceber e fica querendo mais. Quem gosta do mangá Emma, de Kaoru Mori, vai perceber a proximidade e o afastamento em relação à Downton Abbey. Afinal, são dez anos depois e os ingleses conseguem falar com mais propriedade dos seus assuntos do que Mori, que parece muito deslumbrada em alguns momentos e é bem pouco crítica se comparada ao Julian FellowesFora isso, a humanidade das personagens – mesmo os vilões – é um trunfo da série. Ninguém, ou quase ninguém, é perfeito e sem mácula. Mesmo os malvados são capazes de rasgos de humanidade e, claro, temos a redenção de alguns, como Mary. Só que isso fica para a resenha da segunda temporada.
15 pessoas comentaram:
Há algum tempo que ouço comentários acerca dessa série. Sua resenha me deixou ainda mais curiosa para assisti-la.
Ando bem lerda com séries, mas vou procurá-la para baixar. Bem que seria mais confortável se existisse uma edição nacional em dvd... =]
Downton Abbey é simplesmente a melhor série que já assisti. Desde que soube de sua produção, que nos levaria de volta a um ambiente semelhante com o de "Assassinato em Gosford Park" que fiquei de olho. Sua resenha está perfeita - apesar de eu, filho do meio, ter muita pena de Edith, e raiva da burrice insistente e orgulhosa de Mary. Fico esperando a resenha da segunda temporada e do especial de Natal.
Grande abraço.
Sua resenha me deu ma baita vontade de assistir! >.<
Parece ser uma série bem interessante, estava procurando uma série nova agora que terminei de assistir Merlin.
Vou assistir e depois comento o que achei ^^
Terminei agora de ver a primeira temporada e recomendo bastante. Os personagens são muito bem contruídos, a questão do Thomas tb me incomodou, mas fora isso são muito bons.
Estou baixando o primeiro episódio agora. Gosto bastante desses períodos históricos de ruptura de ideias e costumes, sem falar de História do Século XX. A Maggie Smith também é um incentivo e tanto.
Eu adorei a primeira temporada. Todos os sete episódios foram muito gostosos de assistir, sempre emocionando no final. Aliás, a série já se torna marcante desde a ótima música de abertura.
Resolvi assistir a série por causa de Thomas. Só não imaginava que ele era um vilão! Mas não fiquei descontente com isso não... claro, aguardo na série uma outra personagem homossexual. Se for uma que faça bem ao Thomas, melhor ainda. Gostaria dele mostrando uma redenção.
As personagens que eu mais gosto são Mary, Sybil, Anna, Violet e Isobel. Mas no geral acho todos bem interessantes. Até Edith e O'Brien me agradam!
Sem exagero nenhum essa primeira temporada já entrou no meu top de melhores experiências com séries.
Pedro, o Thomas é um personagem bem interessante. O problema é que a série fica meio arrastada na 3ª temporada, tanto que eu nem consegui terminar ainda... Se o Thomas se salva é na 4ª temporada, que deve ser a única.
Mas a segunda temporada é legal e o Thomas mostra um pouco mais de humanidade, por assim dizer. Ele continua sendo muito importante. Aliás, uma das melhores cenas de terceira temporada foi dele...
Assim que eu assistir a 3a temporada eu comentarei no devido post! É muito bom comentar suas resenhas <3
A primeira temporada terminou a pouco no GNT, e eu me viciei. A série é muito boa, com personagens cativantes, do protagonista (se é que existe um) àquele que aparece só de vez em quando. Os núcleos são ricos, os personagens são bem desenvolvidos, humanizados, sem maniqueísmo, mesmo os que poderiam ser os vilões. O'Brien tem seus gestos de bondade; Edith, suas razões; e Thomas... Eu esperava uma "boa ação" dele, e a segunda temporada não me decepcionou. Ótima série!
Gostei muito dessa resenha, mas não li até o fim pra evitar spoiler, rs. Assisti ao primeiro e ao segundo episódio, mas não tinha entendido direto porque assisti a série destraída, agora deu pra acompanhar. Valeu! :)
Adorei a resenha. Foi bem esclarecedora, considerando que me senti um pouco perdida após assistir à primeira temporada.
Olá
Comecei a ver Downton Abbey somente agora, por conselho de uma prima que vê em mim uma pessoa cheia de maneirismos, etc. E já comecei pelo final da primeira temporada. Estou gostando muito, e logo procurei saber o que acontecia, pesquisando no google, e então encontrei a resenha, achei ótima, parabéns, está me dando uma visão melhor do que é realmente a trama da série. Obrigada!
Excelente resenha. Acabei de assistir à primeira temporada e considero seus comentários bem pertinentes.
Só agora estou assistindo. Terminei a 1 temporada e gosto de ler o que falam sobre. Gostei do seu ponto de vista.
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