quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Comentando Rei Davi (Minissérie, Record, 2012)



Eu não ia assistir a minissérie da Record. Já tinha tentado ver as duas minisséries bíblicas anteriores – A História de Esther e Sansão e Dalila – e não consegui... Sério, eu tentei. Mas eis que começou o zum-zum-zum de que Rei Davi estava batendo a Globo em IBOPE e, claro, que a ordem do Bispo Macedo foi que os pastores pedissem nas igrejas que os fiéis assistissem a minissérie. Assim, porque para derrotar a Globo, só com intervenção divina. (*Ironia Mode ON*)) Enfim, eu vi um pedaço do episódio 4, fiquei assustada com a abundância capilar dos atores e a adoção do lápis de olho pelos vilões e fui atrás dos capítulos passados no Youtube. Falando seriamente, o material não consegue ser bom, mas está longe de ser ruim. Rei Davi tem vários pontos positivos e mostra a evolução da dramaturgia da Record, mesmo com alguns atores e atrizes muito limitados. E um mérito: as cenas de ação deixam as da Globo no chinelo. Sim, porque cenas de ação, sejam contemporâneas ou de época, são o calcanhar de Aquiles da emissora líder de audiência.

Rei Davi é uma leitura livre dos livros de I e II Samuel. Isso aparece logo na abertura. Ninguém engana ninguém e quem assiste sabe que serão tomadas muitas liberdades com o texto original. A reconstituição de época me lembra muito uma mistura dos filmes de Cecil B. De Mille com um ar mais poeirento que está na moda nos dias de hoje. Ninguém parece tão sujo como deveria ser, as mulheres estão sempre com umas roupinhas esvoaçantes, quase odaliscas, de braços nus e cabeleira solta. Todas muito limpinhas. Os homens podem ser mais sujinhos e uma das coisas que parece funcionar bem é a maquiagem. O rapaz que faz Davi adolescente tem 25 anos, mas trabalharam muito bem e eu realmente pensei que ele era um garoto de 16, 17 anos. Uma das coisas que me parecem fora do lugar são as cantorias e eventuais orações em hebraico (*com legendas*), mas como não são assim tão freqüentes, até que passa. Ah, sim! E as pessoas falam como nos dias de hoje. Ninguém está dando a mínima para os "tá", "né" e coisas do gênero.

Para quem não conhece as linhas gerais da história de Davi, vamos lá. Saul foi o primeiro rei dos israelitas. Ele foi ungido pelo último dos juízes e profeta, Samuel. Com o passar do tempo, Saul cai em desgraça diante de Deus e Samuel lhe avisa que ele perderia o seu trono. Dito isso, Samuel é conduzido até a casa da família de Davi, que era da tribo de Judá (*e ancestral de Jesus Cristo*), pois Deus havia lhe dito que ali morava o próximo rei de Israel. Jessé, o dono da casa, tinha vários filhos e apresenta todos ao profeta, menos o caçula, Davi, que estava no campo com as ovelhas. Como é comum nesse tipo de história, o menor e mais fraco, é o escolhido. Mais tarde – e a história não é tão linear, Davi vai ao encontro de seu irmão no campo de batalha contra os filisteus e acaba se oferecendo para enfrentar o "gigante" Golias, campeão inimigo. Ele vence, cai nas graças do rei e fica amigo do filho deste, Jônatas.

Com o passar dos anos, Saul passa a sentir ciúmes de Davi, porque ele é um grande guerreiro e ele tem medo da profecia de Samuel, e passa a persegui-lo. Jônatas permanece amigo fiel de Davi mesmo sabendo que perderia o trono para ele. São vários anos de guerra de guerrilha até que Davi se torna rei, mas sem matar Saul, apesar de ter tido várias chances de fazê-lo. A partir daí, temos o reinado de Davi. Suas várias esposas – algumas já casadas com ele quando se tornou rei -, suas batalhas, seus aliados, o extermínio da linhagem de Saul, a proteção ao filho de Jônatas, seus problemas com seus próprios filhos. E, claro, algo que vai ganhar muito destaque na minissérie, a paixão de Davi por Bate-Seba, uma mulher casada, e os pecados e crimes que o rei comete por causa disso, além das conseqüências desse "deslize" em sua vida familiar, espiritual, e como rei de Israel. Como a série deve cobrir a vida de Davi dos 15 até mais de 70 anos, haverá muito o que contar, mas, ainda assim, inventaram muita coisa.

No geral, estou gostando do elenco. O menino que faz Davi jovem, se saiu bem. Paulo Gracindo é um ótimo Saul. Leonardo Brício começou agora como Davi, a maquiagem não convence na fase muito jovem, mas ele compensa com seu talento. Marli Bueno é a sogra mais que "do mal" como Ainoã. João Vitti, que já foi candidato à galã, está muito bem como o fiel Joabe. Cláudio Fontana, que nunca foi lá essas coisas na Globo, consegue defender bem o seu Jônatas (*que é uma personagem que eu gosto muito*). Camila Rodrigues e Maria Ribeiro (*que eu descobri que é meio vesguinha*) conseguem se sair bem como as princesas Merabe, que foi prometida à Davi, mas não se casa com ele, e Mical, que acaba esposa do herói. Já o excelente ator Isaac Bardavid, me parece muito engessado como Samuel. Parece que ele tem tanto respeito pela personagem, que seu Samuel parece engessado, convencional demais, é tanto respeito pela personagem que ela parece mais uma caricatura e não alguém de carne e osso. Este é um caso de ótimo ator que não me parece tão bem. Não vou citar os casos dos ruins que são ruins de qualquer jeito, como o André Sagatti ou o Alexandre Barilari, porque isso é desnecessário.

Dentro do campo das invenções há acertos e erros. A minissérie busca dar personalidade complexa a gente que aparece no texto bíblico sem muitos contornos, como os pais de Davi; Rispa, a concubina de Saul; a princesa Merabe; a feiticeira de En-Dor. Citei mais mulheres, percebem? Sim, as mulheres recebem boa parte da atenção quando se trata de composição de personagem, e é aí que temos mais acertos e erros. Inventaram, por exemplo, um drama para o Príncipe Jônatas. Da Bíblia só temos a informação que o príncipe, amigo de Davi, tinha um filho de 5 anos quando foi morto na mesma batalha em que Saul perdeu a vida. Tanto tempo e somente um filho pequeno? Daí, a minissérie mostra o amor de Jônatas por uma mulher estrangeira – Selima (Bianca Castanho) - e o drama da esterilidade. Agora, nesse capítulo que virá, a esposa desesperada pede que ele se deite com sua fiel escrava. Vamos ver no que dá isso...

Um relacionamento que ganha contornos na minissérie é o do General Abner, partidário de Saul, mas que passa para o lado de Davi, com Rispa, concubina de Saul. A moça começa como escrava maltratada por Ainoã, esposa do rei e grande vilã até agora; o general, que não é flor que se cheire, é apaixonado por ela. Depois, promovida a concubina, em uma falha de roteiro ou continuidade, porque em uma cena ela estava à morte e na outra nos braços do rei, começa o drama dos dois. Mas Rispa é uma personagem importante, com invenções, ou não. Algo que me irrita é a transformação de todas as pessoas da família de Saul em vilões, fica parecendo que a cegonha errou de casa quando deixou Jônatas na tenda de Ainoã. Como um sujeito tão gente fina pode sair de uma família como aquela? E não vejo a necessidade de vilanizar Ainoã, colocar Merabe como uma moça que não tem apreço às convenções, e transformar Mical em uma víbora. Mical, a filha de Saul que se casa com Davi, gosta dele, salva o marido do pai, comete deslizes, mas o texto bíblico não a mostra como vilã. A minissérie, entretanto, investe nas picuinhas de harém, do tipo "as piores inimigas das mulheres, são as mulheres". Eu não gosto disso.

Agora, para além dessas críticas, dois pontos realmente me aborrecem, a ênfase na idéia de que Davi era o enjeitado da família, coisa que não tem base alguma no texto, e a vilanização de Urias, marido de Bate-Seba. O draminha familiar de Davi chega a irritar, mas durou o tempo em que o jovem Leandro Léo, está em cena. A coisa ficou muito forçada, com a mãe defendendo com unhas e dentes o filho, o pai e o irmão mais velho o humilhando, e somente o sobrinho, Joabe (*que é praticamente da idade de Davi*), dando algum valor ao rapaz. Mas o caso de Urias é pior. Urias é vítima, o texto o apresenta assim. Ele é um soldado fiel, um bom homem, que tem sua esposa tomada (*porque duvido que ela pudesse se negar*) pelo Rei, que, depois, acaba se livrando dele. Na minissérie, querem pintar que Bate-Seba era o "amor da vida" de Davi, desde a adolescência, pintam Urias como um homem rude que não dá valor a esposa inteligente e bonita que tem e, claro, o objetivo é justificar os atos do herói. Só que, ao fazer isso, a adaptação foge daquilo que a própria Bíblia é muito boa em colocar: Davi era humano, falho, mas de grande coração e sempre pronto a se arrepender dos males que fazia. Vilanizar Urias é um ato covarde, do mesmo quilate do que é feito com Sinesius no filme Alexandria. Esse tipo de coisa eu realmente odeio.

Uma questão problemática da série e que tende a se agravar é o problema na escalação dos atores e atrizes. Pelo menos sessenta anos de vida de Davi serão abordadas. No início, quando o pastor mata Golias, Mical, Merabe, Bata-Seba, já são mulheres feitas para os padrões da época. Deveriam ter escalado meninas de 11 ou 12 anos, ou que, pelo menos, aparentassem essa idade. Leandro Léo convence como adolescente, mas ele passa muito rápido a ser Leonardo Brício que, efetivamente, não convence como um moço de 20 anos, assim como Maria Ribeiro não parece ter essa idade, por exemplo. Jônatas deveria ser um pouco mais velho que Davi, mas já é homem feito quando do início da série. Temos um salto e entra Leonardo Brício, mas o mesmo ator, com a mesma cara, continua a fazer Jônatas. Imaginem quando Davi tiver 40? Bate-Seba também terá. É aí que eles vão consumar sua "paixão adolescente" (*sim, assim livramos um pouco a cara do herói*)? E Davi/Leonardo Brício vai ser pai de atores de 30 anos? Eu sei que uma boa caracterização, maquiagem e coisa e tal, podem, ajudar, mas a parte do elenco tem problemas sérios e outros virão ainda...

Enfim, o interesse da Record em produzir esse tipo de minissérie é óbvio, atrair a audiência dos evangélicos. A emissora pertence à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e existe, sim, uma agenda nesse sentido. Como a Globo tem uma agenda espiritualista – podem pegar os livros de entrevistas com os autores de novela da emissora – eu não vou criticar a emissora do Edir Macedo por trabalhar da mesma forma, só que de maneira bem mais declarada. Eu aprecio muito a sinceridade, mesmo quando discordo daquilo que está sendo feito. O que nem é muito o caso. Rei Davi é entretenimento, da mesma forma que novelas como O Profeta ou Alma Gêmea da Rede Globo. Vê quem quer. E eu não estou levando em conta os elogios e/ou críticas dos fanáticos religiosos do Youtube, ainda que seja uma graça de ler. O importante, a meu ver, é analisar se o material tem, ou não tem, potencial. Rei Davi é interessante. Vou continuar assistindo. Os defeitos são muitos (*desqualificarem Urias para limpar Davi é o que mais me ofende*), mas é bom ver uma melhora técnica, uma história mais ou menos arrumada e a ousadia de tentar atrair um público negligenciado e dar uma versão brasileira à histórias que Hollywood já tentou adaptar sem tanto sucesso.

2 pessoas comentaram:

eu tb fiquei revoltada com a vilanização de Urias! Os roteiristas estão fazendo de tudo para colocar Davi como Herói dos Heróis sem defeito algum.

Uma coisa que me agradou foi que a interpretação do Leonardo Brício ficou muito próxima da do Leandro Léo, até o jeito de falar e de se movimentar. Achei bem interessante isso.

Pois é, a graça de Davi é ser humano, falho, porém de bom coração e caráter. Urias era vítima e NUNCA ninguém teve a pachorra de fazer um negócio desses. Sinceramente? é o grande ponto fraco da série.

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