Tempos atrás escrevi uma matéria sobre como o shoujo mangá vem retratando a questão do HIV para a Neo Tokyo. Foi o texto que mais gostei de escrever para a revista, o que considerei mais útil. Como hoje é 1º de dezembro e Dia Mundial do Combate a Aids, decidi postar parte dele aqui. Foi em um shoujo mangá que a questão do HIV foi retratada pela primeira vez em algum produto da cultura de massa no Japão, e foi apresentado de forma bem madura e coerente. E isso, no longínqüo ano de 1986, para se ter uma idéia, a questão da AIDS só apareceu em um mangá shounen em 2008!!! Veja a diferença. Outra coisa importante é que quanto menos mortal o HIV parece, mais as pessoas se descuidam e deixam de cuidar da saúde. O grupo no qual a doença mais avança no Brasil é entre as adolescentes: meninas, jovens, pouco informadas e com medo de pedir que o parceiro use camisinha. Outra aberração é saber que 20% da população de SP, a maior metrópole do país, acredita que AIDS é doença de homossexuais e prostitutas. Por essas e outras é que acredito que as campanhas são fundamentais e que a idéia da morte precisa estar presente nelas. Enfim, segue o texto:
20 ANOS DE AIDS – OS MANGÁS NÃO FECHARAM OS OLHOS
Em 1986, mais ou menos cinco anos, depois da descoberta da AIDS, quando muita gente nem sabia que a doença existia e o preconceito era muito grande, surge um mangá abordando a nova epidemia. Na verdade, foi o primeiro meio de comunicação de massa no Japão a tratar do assunto. E foi em um shoujo mangá. Lembrem-se que o primeiro filme de grande repercussão feito em Hollywood a tratar da questão da AIDS foi Filadélfia e somente em 1993, quase dez anos depois!
As autoras de shoujo, durante anos e anos, tem se preocupado com as questões humanas, com dramas e tragédias que podem servir para mergulhar e desnudar a alma das suas personagens. Desde que tive a idéia de escrever esta matéria, há uns seis meses, tenho procurado mangás nos quais a questão da AIDS seja abordada de forma direta e sei que minha pesquisa deve ter sido incompleta, mas só localizei três obras – bem curtas, por sinal – e as três eram shoujo mangá: Tomoi, o pioneiro de 1986; uma das histórias do quinto volume de Confidential Confessions do final dos anos 90; e o primeiro volume de Deep Love, Ayu Monogatari, de 2004.
Tomoi: O Difícil Acordar
Nemureru Mori no Binan (O Belo Adormecido na Floresta), foi publicado na revista Petite Flower, que se dirige a um público composto por garotas no final da adolescência e jovens adultas. Em Tomoi, a autora, Akisato Wakuni, nos apresenta um shounen-ai que não lembra em nada o estilo das obras que andam na moda atualmente, com seus ukes e semes, que são de cara identificadas pelos fãs. Para começo de conversa, o traço desta mangá-ka é bem realista, para a média dos shoujo mangá, que fique bem entendido, sua narrativa é direta permitindo que mesmo alguém eu não leia japonês possa compreender o básico da história. Fora isso, ela representação a vida dos homossexuais sem grandes idealizações, da mesma forma que alguns filmes sérios costumam fazer.
O mangá conta a história do jovem médico, Tomoi Hisatsugu, que parte para Nova York, em 1982, para fazer residência e fugir do clima repressivo do Japão. Percebendo que não se "encaixa" e sabendo que a família nunca aceitaria a sua condição, vê os EUA como uma possibilidade de nova vida. Em Nova York, conhece o médico alemão Richard Stein. Tomoi termina se apaixonando e vivendo um romance com ele, que é visivelmente mais experiente. Ao mesmo tempo, começam a aparecer homens com sintomas de uma doença desconhecida, que deixa Tomoi e outros médicos intrigados.
Sob a influência de Stein, o jovem acaba provando um pouco do estilo promíscuo e irresponsável que parte da comunidade gay parecia levar antes da explosão da AIDS. Seu relacionamento com Stein não dura muito, pois Tomoi quer exclusividade e o amante, "aventuras". Fora isso, a morte de um ex-amante de Stein, acometido da "estranha doença" que começou a aparecer entre os gays nova-iorquinos, faz com que ele decida voltar para a Alemanha.
A segunda parte da história, publicada em 1987, começa com Tomoi visitando os pais no Japão. O retorno o convence definitivamente de que ali não é o seu lugar. Fora isso, descobre que os pais desejam que ele aceite um casamento arranjado (omiai – お見合い), algo muito comum, mas o jovem não se submete e ainda tenta conquistar um amigo de infância. De volta à América, Tomoi conhece o jovem dentista Marvin Willians que se torna seu novo amor. Só que o namorado, além de envolvido em um casamento infeliz, começa a passar mal constantemente, ter febre e apresentar úlceras pelo corpo (sarcoma de Kaposi), ínguas e outros sintomas que deixam o médico Tomoi muito preocupado.
O rapaz estava com Aids e Akisato Wakuni teve coragem e maturidade para tratar do assunto contemporâneo e explosivo com toda a clareza, mostrando às suas leitoras todos os sintomas envolvidos e o drama dos doentes da primeira fase da doença, os homossexuais. Sei que é um spoiler muito grande, mas Tomoi é o tipo de mangá que dificilmente se tornará acessível ao grande público, então, vamos lá: Marvin não morre por causa da AIDS e, sim, ao se jogar na frente de uma bala que tinha Tomoi como alvo. A esposa traída de Marvin, pretendia matar o rival e acabou abreviando a vida de seu marido. A história de Tomoi não termina aí, pois o jovem, desejando encontrar a morte, alista-se como médico voluntário no Afeganistão. Só que a autora não volta à questão da AIDS, nosso foco interesse, por isso, deixo Tomoi partir em busca do seu destino e sigo em frente.
Confidential Confessions: Meninas Boas também ficam doentes
Se vocês consultarem a página da Tokyopop irão perceber que Confidential Confessions, de Momochi Reiko, tem uma característica diferente da maioria dos mangás que conhecemos. Cada volume da série tem de uma a quatro histórias completas. Assim, você pode pegar qualquer volume aleatoriamente sem medo, pois ele tem princípio, meio e fim. A série também não tem protagonistas, cada história tem suas personagens principais que não voltam a aparecer em outros volumes. Comecei pelo volume cinco exatamente porque queria ler a história que discutia a AIDS.
A série original – pois há outra em andamento – foi publicada, a partir de 1999, na revista Dessert – a qual é voltada para um público adolescente mais velho – e teve seis volumes independentes mas que se colocados juntos formam uma interessante viagem ao mundo dos problemas e medos das adolescentes japonesas. Na verdade, não somente das japonesas, pois reconheci problemas que são também comuns aqui no Brasil, o que torna a série mais acessível à leitoras de outros países. Os títulos das histórias se remetem a sentimentos ou objetos significativos. Assim temos lágrimas, desejo, segredo, amanhã, tontura, a porta, erros, dor, entre outros. Como não existe regra para o tamanho das histórias, a autora mostra que consegue se sair bem com one shots, ou histórias de 100 ou 50 páginas. Fiquei curiosa em saber como ela se sairia com uma série mais longa.
A história que aborda a questão da AIDS se chama “Desejo”. Nana, a protagonista, é uma menina alegre, cheia de vida e bem afortunada, tem uma amiga para todas as horas, chamada Migawa e um namorado apaixonadíssimo por ela cujo nome é Jun. De banal temos o fato de Migawa ser apaixonada por Jun, seu amigo de infância, e ter aberto mão dele por causa de Nana. Jun é um rapaz bem educado e gentil, capaz de assumir a culpa por um erro de um colega para que ele não seja expulso. Amizade acima de tudo. Enfim, temos um trio de adolescentes simpáticos e de boa índole.
Um belo dia, porém, Nana começa a passar mal. Sofre tonturas, começa a ter diarréia, manchas pelo corpo, perde peso sem razão aparente e, por fim, desmaia na escola. O diagnóstico médico é imediato, a menina tem AIDS. A única explicação, é que ela contraiu a doença via transfusão de sangue alguns anos antes, quando era uma criança. Afinal, sua única experiência sexual tinha sido com o namorado e ela não usava drogas, nem, como percebemos no desespero do jovem casal, camisinha.
Hoje, esses casos são raros, quase inexistentes, mas sangue contaminado já fez com que muita gente contraísse AIDS, em especial, os hemofílicos. Claro, que a autora ao escolher esta forma de contágio, queria enfatizar a fatalidade, a tragédia que pode alcançar qualquer um, inclusive uma adolescente bem comportada como Nana. Ela também mostra o segundo estágio da epidemia: a queda do tabu de que a AIDS era um problema dos gays, e que grupos de risco na verdade não existem.
A partir daí, começa a via crucis da menina e a autora tem a chance de dar uma aula sobre a doença, suas formas de contágio e como o preconceito acaba sendo pior do que a própria AIDS para os doentes. Aqui mora, também, um dos poucos pecados do mangá: o excesso de didatismo. Mas o interessante é que a autora faz piada – uma das poucas – com seu próprio exagero, ao colocar a crítica na boca de uma das personagens que acusa Nana de estar “sempre dando aula” ao falar de sua doença. A aula, entretanto, é mais que necessária.
A autora contou também com a assessoria de um especialista o Dr. Yasutaka Hoshi, diretor do Departamento de Transfusão de Sangue do Jikei University Hospital em Tóquio. Talvez, a falta de informações consistentes sobre a AIDS entre adolescentes – de lá e de cá – seja realmente grande o suficiente para necessitar de uma abordagem direta e hiper-detalhista. É interessante a cena do professor dando aula sobre as formas de contágio e evolução da doença. O coitado, como a maioria dos adultos, fica pasmo diante da “suposta experiência” das meninas em relação ao sexo, ao mesmo tempo em que são muito “ignorantes” em relação aos riscos de contraírem doenças, ou, mesmo, engravidarem.
Beijo transmite AIDS? E beber do mesmo copo? Sexo oral? Sexo anal? AIDS não é doença de homossexuais e prostitutas? E transar com camisinha, pode? E picada de mosquito transmite a doença? Usar talheres de alguém que tem AIDS é um risco? Tudo isso é discutido no mangá e ilustrado no drama da protagonista, no temor do namorado que pode ter sido contaminado, da melhor amiga que não sabe como ajudar, mas quer estar perto sempre. Enfim, é muita história condensada em menos de 100 páginas.
Não vou contar como todos os detalhes nem o desfecho, mas o fato é que depois de massacrar bastante os leitores, desmontar da nossa cabeça idéias tolas como a de “grupo de risco”, a autora não nos priva de um final feliz. Claro que “feliz” não deve ser compreendido como mágico ou milagroso, mas como algo que não nos priva da esperança. Ela simplesmente nos apresenta a terceira fase da AIDS que é a possibilidade de sobrevida – com efeitos colaterais, claro – desde que se tome o coquetel de drogas e se leve uma vida regrada.
Deep Love: Afinal, que doença é essa?
Eu cheguei a Deep Love não por causa da temática da AIDS, mas porque estava fazendo uma coluna sobre como a prostituição é apresentada nos shoujo mangá. Daí, vocês já deduzem que a protagonista é uma prostituta, mais do que isso, uma colegial que, como tantas no Japão, vêem na prostituição uma forma de ter acesso à bens de consumo fora do seu alcance. Bem, a história da jovem Ayu não é tão simples assim, mas ela se enquadra no papel, quanto a isso não há dúvida.
O mangá sai desde 2004 na revista Betsufure, a mesma que publicava Peach Girl, e já chegou pelo menos ao 8º volume. Assim como Confidential Confessions, Deep Love é uma série que trabalha em cima de histórias curtas. O autor dos roteiros é um sujeito chamado Yoshi que começou sua carreira escrevendo romances cujos capítulos eram mandados pelo celular. Sim, no Japão pessoas lêem livros e mangás no celular. Eu não consigo me imaginar fazendo esse tipo de coisa, mas sei que funciona e dá muitos lucros. O sucesso do romancista fez com que suas obras virassem quadrinhos com arte de Yuu Yoshii. É confuso, mas o autor e a desenhista têm nomes bem parecidos. No caso de Ayu Monogatari (*A História de Ayu*), o sucesso foi tão grande que temos até série live action.
Deep Love – Ayu Monogatari é uma história trágica. Ela mostra de forma crua a vida de uma colegial que se prostitui e dá praticamente todo o seu dinheiro para seu cafetão que é viciado em drogas. Ela é apaixonada por ele e os dois mantêm um relacionamento amoroso que junta sexo e drogas, e a venda do corpo da moça. Deep Love poderia ser contundente o suficiente só mostrando o dia-a-dia de Ayu de cliente em cliente, levando uma amiga desmiolada para um programa a três, se drogando com o namorado-cafetão e, muito provavelmente, tendo um final bem triste. Mas as coisas não são bem assim, pois Deep Love é uma história de amor e redenção, uma fábula. E este é o ponto que dificulta o tratamento da questão da AIDS.
As coisas começam a mudar quando Ayu conhece uma velhinha que lhe dá lições preciosas de vida e mostra que até ela, que se sentia tão degradada e sem objetivos na vida, poderia “florescer”. O pessimismo da garota se confronta com o otimismo de uma idosa que sofreu muito na vida, mas nunca desistiu e não se deixou degradar. A moça continua errando, afinal, ninguém muda por encanto, mas começa a acertar também. Só que a vida exigiria de Ayu um grande sacrifício. Mas quando amamos, somos capazes de tudo, não é? Ou pelo menos é assim que acontece nas novelas, romances e, claro, nos mangás.
Não darei maiores detalhes da trama que tem dois volumes somente, mas Ayu Monogatari é muito franco a tratar de temas muito pesados e com o mérito de ainda conseguir deixar o seu coração cheio de esperanças no final. Dentro da curta história falam de suicídio, uso de drogas, prostituição e estupro de adolescentes. Até a questão do aborto está lá, de forma muito bem encaixada e com final feliz para mãe e bebê. A questão da prostituição de colegiais é particularmente bem abordada, sendo apresentada como uma violência, às vezes praticada pela própria garota contra si mesma. Enquanto Ayu está insensível ela consegue lidar com a venda do seu corpo sem problemas, mas a partir do momento em que a vida parece lhe oferecer algo mais, ela não deseja mais aquele caminho, nem para ela, nem para ninguém!
E a AIDS? Bem, aí mora o problema. Como em nenhum momento o nome da doença é tocado, é possível ao leitor desatento não perceber que esta é a doença que tira a saúde e a vida de Ayu. Os autores mostram o uso de drogas. Ela teria contraído AIDS assim, por causa de agulhas contaminadas? Em nenhum momento de usa camisinha. Será que algum dos clientes da moça era aidético? Sabe-se hoje que as prostitutas estão entre os segmentos mais vulneráveis à doença. Bem, o que eu estou apontando como falha é exatamente a não abordagem direta da questão. Não seria necessário o didatismo de Confidential Confessions, mas faltou alguma coisa. Agora, só por tratar de todas essas questões espinhosas isso já torna a série mais que obrigatória.
FUNÇÃO DIDÁTICA
Como professora, eu vejo função didática em todos os materiais. Os quadrinhos – em especial os mangás por sua disseminação – são excelentes veículos pedagógicos. Ensinar não é ser chato, mas falta a alguns autores e autoras a visão de que eles poderiam estar ajudando a barrar o avanço da AIDS, simplesmente colocando suas personagens para usar camisinha. Isso se faz mais urgente ainda quando a escola, veja que o Japão não é muito diferente do Brasil nesse critério, não tem muito interesse, por motivos diversos, em falar do assunto.
Sexo e cada vez mais freqüente em mangás shoujo. Eu sei disso, porque sou leitora assídua, mas apresentação de anticoncepcionais é quase zero. Nada de camisinha, muito menos pílula anticoncepcional. Aliás, esse último item é espinhoso, pois a pílula só foi liberada no Japão em 1999 e muita gente acredita que o atraso foi menos por machismo – afinal, a pílula dá um poder enorme á mulher – e mais por causa do interesse das clínicas de aborto. Afinal, há meninas no Japão que ao 16 anos já fizeram vários e o governo faz toda uma campanha para desencorajar o uso da pílula. Aborto por lá é comum, é usado como método anticoncepcional e, sinal claro, de que as pessoas não estão usando camisinha.
Voltando à camisinha, método mais eficiente na prevenção à AIDS, pesquisas de 2005 mostram a resistência dos homens japoneses em usarem preservativos. Eles podem estar passando AIDS para as parceiras, mesmo sendo um risco bem menor, podem ser contaminados por elas. Mas e daí? O que importa é o prazer. Será que não seria a hora dos mangás shounen e seinen fazerem sua parte? Assim como em outras partes do mundo, os infectados por AIDS tem crescido no Japão. A maioria dos novos doentes são mulheres, como no caso do Brasil, derrubando o mito de que AIDS é doença de gays, de salarymen, que trabalharam fora do Japão em países como a Tailândia, ou prostitutas. Acredito que o shoujo mangá ainda terá muito o que dizer a respeito da AIDS, infelizmente...
1 pessoas comentaram:
Li Confidential Confessions depois de ler comentários a respeito aqui no blog.
Diria que a série é praticamente obrigatória.
Deveria ser usada para discussão com adolescentes, pois retrata a maioria das situações e conflitos que os adolescentes enfrentam, além de fazer vários alertas importantes.
Li com certa pressa e estou me programando para reler com mais calma.
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