Fiquei sabendo do documentário da HBO Koran by Heart, ou Alcorão de Coração, pelo blog Listas de Dez que faz relações de dez filmes a partir de um determinado recorte. Achei que a premissa do documentário poderia ser interessante: acompanhar três crianças de dez anos, um menino do Tajiquistão, um menino do Senegal e uma menina das Ilhas Maldivas na grande competição mundial de recitação do Alcorão por crianças e adolescentes. A competição acontece todos os anos no Cairo, Egito, durante o Ramadã. Um dos prêmios para o vencedor é recitar diante do presidente. O filme é novíssimo, mas o presidente ainda era o Mubarak, que foi derrubado recentemente do poder. Decidi tentar a sorte e achei o torrent. Hoje terminei assistindo.
Começo dizendo que o documentário, que tem algo de reality show, é muito bonito e emocionante. Apesar de considerar absurdo decorar textos imensos – o menino do Tajiquistão sabia todo o Alcorão de cor – em uma língua que você não conhece, a dedicação, a empolgação das crianças e a inteligência dos três fez com que eu me apegasse de imediato. Não consegui guardar os nomes, o menino do Tajiquistão tinha nome duplo e um deles era Mohamed (*novidade*), mas o senegalês e a menina das Maldivas tinham nomes difíceis. Com certeza, a menina das Maldivas e o menino do Tajiquistão eram super dotados, já o senegalês acabou ficando um pouco de lado, seja porque o menino ficou meio que abandonado, já que foi sem pai nem mãe para o Cairo, seja porque era muito tímido. A menina também era, mas era bem articulada e falava inglês com muita fluência para a sua pouca idade. O documentário tem legendas boa parte do tempo, já que estão falando em árabe ou outras línguas, mas a maioria das falas em inglês não era legendada. Foi um pouco difícil entender as falas da mãe da menina e de um garoto da África do Sul. Não sei se tem legendas em português (*olhem nos comentários, a Sett colocou o link. Obrigada!*), mas eu adoraria encontrar para mostra o documentário para mais gente.
Enfim, o concurso era presidido pelo ministro de assuntos religiosos do Egito, um sujeito muito preocupado em repetir que era moderado e da importância de minar o avanço do fundamentalismo islâmico. Sempre sorrindo, ele passava muita empatia para as crianças. Os juízes eram eminentes conhecedores do Corão, o presidente, um velhinho cego de um olho. As regras, bem, aí mora o problema... Há especificidades que eu não saberia explicar, por exemplo, existem regras de pronúncia que devem ser aplicadas à recitação do Corão. O menino do Tajiquistão, por exemplo, não as dominava completamente. Conta também a cadência, a musicalidade. As crianças que ganharam notas baixas eram deficientes nisso. Se o candidato errasse e se corrigisse sozinho, perdia pouco, se os juízes tivessem que corrigir, era despontuado com mais rigor. A menina das Maldivas errou e foi corrigida, mas se mostrou muito competente em outros aspectos. Mas, bem, eu não teria como avaliar. Agora, os dois problemas é misturar crianças de até 7 anos de idade com sujeitos de até 20-21 anos. Por mais qualitativa que fosse a avaliação, e ela era, os candidatos não estavam em pé de igualdade.
E o grande problema, a língua. Nenhuma das crianças falava ou entendia árabe. Simplesmente decoravam o Alcorão, tinham explicações de mestres e, no caso do menino do Tajiquistão, tratavam esse conhecimento como um amuleto. Quem mais perdeu com isso foi o menino do Senegal, aparentemente sozinho, sem intérprete, sentou diante do computador e apertou lá o que devia. Foi recitada a primeira frase e era uma frase freqüente no Corão. O menino, muito nervoso, começou a recitar o capítulo errado. Foi interrompido pelos juízes em árabe. Não entendeu, recomeçou, recomeçou, os juízes cansaram de interromper. As lágrimas desciam do rosto do menino, até que ele foi dispensado com nota baixíssima. De cortar o coração! Ficou chorando agarrado em sua cópia do Corão, mas o juízes lhe deram um prêmio de consolação... A questão toda, claro, é como um concurso pode ser justo com essa falha de comunicação? E havia a fome e o cansaço. Em pleno Ramadã, todos estavam jejuando durante o dia. Paravam para comer e voltavam 9h30. As competições seguiam até 3h da manhã. Quando a menina das Maldivas foi participar da primeira etapa era quase duas da manhã, a criança estava caindo de sono...
Mas eu me afeiçoei às crianças. O menino do Tajiquistão, muito articulado e com um pai amoroso, que queria, claro, que o filho fosse um bom muçulmano. O pai teve que abandonar a escola para lutar na guerra civil, queria que o filho estudasse. O seu drama foi bem costurado, pois pouco antes de ir para o Cairo, fecharam sua escola. O governo estava de olho em possíveis centros de formação de fundamentalistas. O pai foi atrás de uma escola na capital e, depois de examinado, descobriu-se que apesar de brilhante, inteligente, articulado, o menino mal sabia ler e escrever em sua própria língua. Sua escola no interior era só Corão. E o diretor da escola explicou o quanto esse tipo de educação era ineficiente e perigosa. Ficamos na expectativa não somente do desempenho do menino no concurso, quanto do seu futuro. Seria aceito na escola? O menino, e eu não vou dizer se ele ganha, ou não, encantou os juízes. Recitando de olhos fechados, pois, segundo ele, as páginas passavam em sua mente e ele não queria se distrair, ele leva vários juízes às lágrimas. Todos queriam abraçá-lo e beijá-lo depois da primeira eliminatória... Mas ainda viria a grande final.
Já a menina, bem, eu me encantei por ela e pela ligação que ela tinha com a mãe. A maior reclamação da criança foi deixar a mãe para trás, já que era a mãe que treinava com ela a recitação do Corão. Só que exatamente a menina pode não ter um bom futuro. Apesar de brilhante, primeira da classe em todas as disciplinas, fluente em inglês, quase perfeita em recitação do Corão, bonita, tem um pai fanático religioso. O pai do menino do Tajiquistão era muito religioso, o do menino senegalês era um imã, mas o pai da menina era um sujeito que passou por uma experiência de conversão daquele tipo "nasci na religião, mas agora é que eu encontrei deus" e cheio de minhocas na cabeça. Para ele, Maldivas não era um país muçulmano o suficiente, nem o Egito, e queria que os filhos tivessem uma educação religiosa de verdade. Sonho do sujeito? Ir para o Iêmen (!!!) e colocar a filha em uma escola religiosa lá.
Já a mãe, não quer ir para o Iêmen (*ela tem juízo*) e quer que a filha tenha uma educação completa. Ela não para de dizer que a menina é a primeira da classe, que ama ciências e matemáticas, que começou a falar antes de um ano de idade e a aprender as letras antes dos dois anos. E, bem, ela fica estimulando os sonhos da menina que quer ser "exploradora" e cientista. Quando o pai foi perguntado sobre a questão disse que quer que a filha tenha uma boa educação, mas que ela será uma dona de casa. Imagino que queira casar a coitada no Iêmen com 14 anos... Eu fiquei triste só de imaginar. E, apesar de eu saber que ela amava e se orgulhava da filha, não havia grandes demonstrações de carinho por parte dele. Timidez? Quando a menina comete um errinho na final, ele diz para a bichinha, que estava toda contente, que ela não iria ganhar prêmio nenhum e dá a entender que ela tinha fracassado. Só para se ter uma idéia, ela ficou com a maior nota da classificatória, a maior entre todos os concorrentes, 9,7. Aliás, há uma entrevista com o presidente das Maldivas e ele reitera que o país é muçulmano moderado e que isso é bom, que as mulheres tem direitos garantidos e liberdade, mas que as influências fundamentalistas são visíveis, especialmente, na roupa das mulheres. Desde o final da década de 1980 o véu saudita/iemenita é quase que regra para todas.
O documentário mostra outras crianças, apesar do foco nas três que citei. Mostram o menino egípcio de 7 anos, o mais jovem competidos. O garoto australiano que o pai quer levar para morar no Marrocos, um país de cultura árabe. O menino da África do Sul. Uns rapazes que ficam discutindo sobre tolerância com os cristãos e judeus no ônibus. Um rapaz egípcio e sua mãe de niqab. E a moça italiana, Susana, a única outra garota que aparece competindo e que foi para a final, também. Aliás, a menina das Maldivas desperta a surpresa dos juízes e o ministro faz questão de enfatizar a igualdade no Islã, mas que é muito difícil ver uma menina competindo dessa forma com garotos. Talvez, ele estivesse pensando nas madrassas que, em sua maioria, são para garotos ou se preocupam mais com eles, ou então, nos pais estarem incentivando a filha. Sei lá. Imagino que isso possa ter pesado na avaliação dela, mas, como disse lá no início, as regras são complicadas para mim. De qualquer forma, acho positivo que as meninas sejam aceitas nessas competições. Não sei se existem competições cristãs de porte semelhante, deve haver, mas existem entre os judeus. E eu duvido que os ultra-ortodoxos ou até os ortodoxos aceitem meninas nesses eventos. Se alguém souber, me corrija, por favor.
Enfim, se puder, assista Alcorão de Coração (Koran by Heart), pois é um ótimo documentário e mostra bem a riqueza do mundo muçulmano, seus aspectos positivos, alguns negativos. Mostra, também, crianças esforçadas, pais amorosos, juízes muito humanos. Eu achei o torrent, deve ser fácil baixar. Não sei se tem em português, mas passou por aqui na HBO.
3 pessoas comentaram:
Valeria vi seus comentarios no twitter e assiti o documentario agorinha legendado em portugues http://www.youtube.com/watch?v=o_4TnBezxvI
A menina é uma graça! Inteligente e carismatica.A mãe dela parecia bem decidida, e espero q tenha a ultima palavra sobre a educação da criança. Aquele pai...ai ai ai.
O garoto campeao tem voz de anjo, espetacular.
E achei mt injustiça com o menino do senegal, não tinha ninguem pra orienta-lo e traduzir o q os juizes falavam.
Até onde eu me lembro, saber algo by heart, é saber algo de cor, decorado. Portanto, a tradução como "Alcorão de Coração" não se justifica, basta ver do que se trata o programa. E não consigo me emocionar com Alcorão ou com nada que venha do islamismo, especialmente por conta de como a maioria dos países islâmicos tratam as mulheres. Esse poderia ser considerado meu preconceito declarado, ou melhor, conceito mesmo.
Bem, admitir preconceitos ou conceitos é muito bom, mas sem que se tente mudá-los, não faz lá muita diferença. É preciso equilibrar e ver o que procede e o que não procede.
Agora, quanto ao título, ele não está de todo incorreto. "De Cor" vem do latim, cor/coração. entendeu? Para os romanos, era esse órgão a sede dos sentimentos e mesmo do raciocínio. Para os gragos e judeus antigos, o fígado era o órgão dos sentimentos. Mas, enfim, quem escolhe o título em português colocou "de coração" para dar a noção da intensidade dos sentimentos envolvidos na competição. Ou seja, título perfeito.
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