Quando coloquei no ar o post sobre o texto Os quadrinhos podem destruir a literatura, a Renata Vecina entrou em contato pelo Twitter e teceu alguns comentários. Ela é professora de língua portuguesa e mestra em Psicologia e Educação pela USP, atuando na Rede Estadual de Ensino e na Universidade Paulista (Unip). Pois bem, perguntei se ela gostaria de escrever sobre a questão para o Shoujo Café e, bem, para a minha alegria, ela aceitou. Então, eis a experiência de uma professora que trabalha com HQs em sala de aula e que, bem, não está deixando de oferecer a literatura padrão para os seus alunos e alunas. As imagens são escolha da Renata e é uma honra poder publicar o texto dela.
Literatura X Histórias em Quadrinhos: um combate desnecessário.
Não são poucas as pessoas que acreditam que as Histórias em Quadrinhos (HQ) são uma manifestação artística “menor”, responsável por afastar os jovens da literatura canônica. Não concordo com essas opiniões. Sei que raramente se inicia a incursão pelo mundo das letras com os chamados “livros literários”.
Pretendo descrever uma sequência didática que desenvolvi com alunos do 2º ano do Ensino Médio nas aulas de Literatura. Esse trabalho é capaz de ilustrar meu pensamento. Estudávamos o romantismo brasileiro, ou seja, textos literários numa linguagem que os alunos quase não compreendiam e, por isso, acabavam odiando.
Eu estava insatisfeita com minha maneira de abordar os textos literários e, quando li a tese de doutorado de William Cereja sobre literatura, percebi que estava, na verdade, dando aulas de História da Literatura e não de Literatura. Qual a diferença? Retratar as escolas literárias, suas principais características, seus autores, principais obras, numa linha histórica – o que eu acabava fazendo em minhas aulas - era trabalhar a História de Literatura e desconsiderar o mais importante: o texto literário em si. Era isso o que eu deveria fazer: trabalhar o texto literário, as relações de intertextualidade que ele suscitava em diferentes tempos históricos, sua importância no contexto histórico da época e no atual. Eu não precisava trabalhar com o tempo linear, poderia fazer ganchos entre diversos momentos, diversas manifestações literárias e artísticas.
Passei a me empenhar nessa tarefa e busquei maneiras de atrair a atenção dos alunos para a temática. Encontrei uma adaptação do livro “O Guarani” para HQ. É uma publicação da editora Ática, com desenhos muito bonitos feitos pelo ilustrador Luiz Gê. Não resisti e comprei a obra, claro. Fiquei super ansiosa para apresentar aos alunos os fragmentos do livro que eles tinham na apostila em conjunto com a obra em HQ.
No livro didático, estava reproduzida uma passagem emblemática na qual o índio Peri vai caçar uma onça para mostrá-la a Ceci. Antes de partirmos para a leitura do texto, apresentei a eles a página da HQ em que essa cena fora adaptada.
Não é preciso dizer que a leitura foi muito mais proveitosa do que na outra sala, em que eu testei o movimento contrário - apresentar primeiramente a obra literária para, depois, apresentar a HQ. A turma que leu primeiramente a obra literária, não conseguiu inferir o significado de palavras como “forquilha” e outras. Muitos alunos sequer entenderam o sentido geral do fragmento lido. Já a classe que antes havia visto a HQ, compreendeu muito melhor o texto e vários alunos disseram ter apreciado a obra literária.
Depois disso, resolvi em todas levar para eles outras formas de manifestações artísticas: obras de arte, grafites, HQs e outras que fizessem intertextualidade com os textos trabalhados. Também escolhi apresentá-las sempre antes de lermos a obra literária, pois vi que eles se envolviam mais com a leitura quando já haviam sido sensibilizados para a temática que iríamos abordar.
Uma característica muito importante do Romantismo é a descrição das personagens, marcada principalmente pela idealização dos heróis: personagens belos, corajosos e de moral inigualável. A apresentação da temática para a classe foi feita com base em textos não verbais, ou seja, imagens. Antes de lermos a descrição do personagem Peri e da personagem Iracema, mostrei aos alunos representações desses dois personagens em diferentes momentos da história brasileira.
Todos os alunos da classe acharam a representação do Peri na HQ muito mais bonita e interessante. Conversamos, então, sobre as cores utilizadas em cada uma das capas e também sobre os traços típicos de cada uma das representações. O Peri antigo obedecia aos ideais românticos, com traços suaves e cores em tons pastéis. Já a capa da HQ apresenta cores quentes e um Peri com traços físicos considerados atraentes no nosso momento histórico: ele é alto, forte, musculoso. Enfim, é o Peri “saradão”, com o corpo considerado perfeito para os padrões de beleza de nosso tempo.
Fizemos a mesma análise das imagens de Iracema, personagem símbolo do Romantismo brasileiro. Levei para a classe um retrato de Iracema pintado a óleo em 1881 por J. M. Medeiros e uma imagem contemporânea da “virgem dos lábios de mel”. As imagens da índia promoveram um debate instigante sobre os padrões de beleza de cada um dos momentos históricos. Antes, o corpo mais rechonchudo, agora, o corpo trabalhado pela musculação, como podemos ver nas revistas de beleza e nos programas televisivos.
Conversamos bastante sobre a “ditadura” da beleza imposta a homens e mulheres atualmente e como os ideais de beleza vão se alterando ao longo dos tempos. Muitos alunos comentaram que perceberam essas mudanças, pois antes eram consideradas bonitas as mulheres esqueléticas, que agora estão sendo substituídas por mulheres mais fortes e musculosas. As meninas continuam preferindo o visual “Gisele Bunchen” e muitas delas até comentaram que o cabelo do retrato contemporâneo de Iracema se assemelha ao da top, principalmente no volume e nas ondulações. Já os meninos relataram preferir os corpos malhados das Panicats e das moças do BBB.
Depois de todas essas reflexões, partimos para a leitura dos fragmentos das obras literárias em que eram descritos Peri e Iracema. Foi demais ver os alunos empenhados em desvendar os sentidos dessa linguagem literária que até então era considerada enfadonha e inacessível por toda a classe.
Continuamos o nosso trabalho com outras descrições de personagens, para fazer uma contraposição entre os personagens idealizados e outros que não obedeciam esse padrão: como Leonardo e Luisinha de Memórias de um Sargento de Milícias - obra que também possui adaptação para HQ - e Macunaíma - personagem emblemático do Modernismo brasileiro, cuja descrição é uma paródia da descrição de Iracema. Deixarei para falar desse trabalho numa outra oportunidade.
Para terminar esse relato de experiência, devo retormar a questão que suscitou minhas reflexões. As HQs e outras formas de expressão artísticas não podem ser consideradas como as vilãs que afastam o jovem da literatura canônica. O ideal é que os professores as utilizem como aliadas para a construção de novos conhecimentos. Isso é trabalhar com o conhecimento prévio dos alunos e, a partir daí, contribuir para a formação de novos saberes. Aliás, esse tipo de trabalho está em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais, que consideram as aulas de Língua Portuguesa um dos pilares da área de Linguagens e Códigos. Reparem que Linguagens aparece no plural, justamente porque não podemos privilegiar apenas uma linguagem, mas sim as diversas linguagem que fazem parte do nosso universo cultural e de nossos educandos.
Renata do Monte Vecina, professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino.
Não são poucas as pessoas que acreditam que as Histórias em Quadrinhos (HQ) são uma manifestação artística “menor”, responsável por afastar os jovens da literatura canônica. Não concordo com essas opiniões. Sei que raramente se inicia a incursão pelo mundo das letras com os chamados “livros literários”.
Pretendo descrever uma sequência didática que desenvolvi com alunos do 2º ano do Ensino Médio nas aulas de Literatura. Esse trabalho é capaz de ilustrar meu pensamento. Estudávamos o romantismo brasileiro, ou seja, textos literários numa linguagem que os alunos quase não compreendiam e, por isso, acabavam odiando.
Eu estava insatisfeita com minha maneira de abordar os textos literários e, quando li a tese de doutorado de William Cereja sobre literatura, percebi que estava, na verdade, dando aulas de História da Literatura e não de Literatura. Qual a diferença? Retratar as escolas literárias, suas principais características, seus autores, principais obras, numa linha histórica – o que eu acabava fazendo em minhas aulas - era trabalhar a História de Literatura e desconsiderar o mais importante: o texto literário em si. Era isso o que eu deveria fazer: trabalhar o texto literário, as relações de intertextualidade que ele suscitava em diferentes tempos históricos, sua importância no contexto histórico da época e no atual. Eu não precisava trabalhar com o tempo linear, poderia fazer ganchos entre diversos momentos, diversas manifestações literárias e artísticas.
Passei a me empenhar nessa tarefa e busquei maneiras de atrair a atenção dos alunos para a temática. Encontrei uma adaptação do livro “O Guarani” para HQ. É uma publicação da editora Ática, com desenhos muito bonitos feitos pelo ilustrador Luiz Gê. Não resisti e comprei a obra, claro. Fiquei super ansiosa para apresentar aos alunos os fragmentos do livro que eles tinham na apostila em conjunto com a obra em HQ.
No livro didático, estava reproduzida uma passagem emblemática na qual o índio Peri vai caçar uma onça para mostrá-la a Ceci. Antes de partirmos para a leitura do texto, apresentei a eles a página da HQ em que essa cena fora adaptada.
Não é preciso dizer que a leitura foi muito mais proveitosa do que na outra sala, em que eu testei o movimento contrário - apresentar primeiramente a obra literária para, depois, apresentar a HQ. A turma que leu primeiramente a obra literária, não conseguiu inferir o significado de palavras como “forquilha” e outras. Muitos alunos sequer entenderam o sentido geral do fragmento lido. Já a classe que antes havia visto a HQ, compreendeu muito melhor o texto e vários alunos disseram ter apreciado a obra literária.
Depois disso, resolvi em todas levar para eles outras formas de manifestações artísticas: obras de arte, grafites, HQs e outras que fizessem intertextualidade com os textos trabalhados. Também escolhi apresentá-las sempre antes de lermos a obra literária, pois vi que eles se envolviam mais com a leitura quando já haviam sido sensibilizados para a temática que iríamos abordar.
Uma característica muito importante do Romantismo é a descrição das personagens, marcada principalmente pela idealização dos heróis: personagens belos, corajosos e de moral inigualável. A apresentação da temática para a classe foi feita com base em textos não verbais, ou seja, imagens. Antes de lermos a descrição do personagem Peri e da personagem Iracema, mostrei aos alunos representações desses dois personagens em diferentes momentos da história brasileira.
Todos os alunos da classe acharam a representação do Peri na HQ muito mais bonita e interessante. Conversamos, então, sobre as cores utilizadas em cada uma das capas e também sobre os traços típicos de cada uma das representações. O Peri antigo obedecia aos ideais românticos, com traços suaves e cores em tons pastéis. Já a capa da HQ apresenta cores quentes e um Peri com traços físicos considerados atraentes no nosso momento histórico: ele é alto, forte, musculoso. Enfim, é o Peri “saradão”, com o corpo considerado perfeito para os padrões de beleza de nosso tempo.
Fizemos a mesma análise das imagens de Iracema, personagem símbolo do Romantismo brasileiro. Levei para a classe um retrato de Iracema pintado a óleo em 1881 por J. M. Medeiros e uma imagem contemporânea da “virgem dos lábios de mel”. As imagens da índia promoveram um debate instigante sobre os padrões de beleza de cada um dos momentos históricos. Antes, o corpo mais rechonchudo, agora, o corpo trabalhado pela musculação, como podemos ver nas revistas de beleza e nos programas televisivos.
Conversamos bastante sobre a “ditadura” da beleza imposta a homens e mulheres atualmente e como os ideais de beleza vão se alterando ao longo dos tempos. Muitos alunos comentaram que perceberam essas mudanças, pois antes eram consideradas bonitas as mulheres esqueléticas, que agora estão sendo substituídas por mulheres mais fortes e musculosas. As meninas continuam preferindo o visual “Gisele Bunchen” e muitas delas até comentaram que o cabelo do retrato contemporâneo de Iracema se assemelha ao da top, principalmente no volume e nas ondulações. Já os meninos relataram preferir os corpos malhados das Panicats e das moças do BBB.
Depois de todas essas reflexões, partimos para a leitura dos fragmentos das obras literárias em que eram descritos Peri e Iracema. Foi demais ver os alunos empenhados em desvendar os sentidos dessa linguagem literária que até então era considerada enfadonha e inacessível por toda a classe.
Continuamos o nosso trabalho com outras descrições de personagens, para fazer uma contraposição entre os personagens idealizados e outros que não obedeciam esse padrão: como Leonardo e Luisinha de Memórias de um Sargento de Milícias - obra que também possui adaptação para HQ - e Macunaíma - personagem emblemático do Modernismo brasileiro, cuja descrição é uma paródia da descrição de Iracema. Deixarei para falar desse trabalho numa outra oportunidade.
Para terminar esse relato de experiência, devo retormar a questão que suscitou minhas reflexões. As HQs e outras formas de expressão artísticas não podem ser consideradas como as vilãs que afastam o jovem da literatura canônica. O ideal é que os professores as utilizem como aliadas para a construção de novos conhecimentos. Isso é trabalhar com o conhecimento prévio dos alunos e, a partir daí, contribuir para a formação de novos saberes. Aliás, esse tipo de trabalho está em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais, que consideram as aulas de Língua Portuguesa um dos pilares da área de Linguagens e Códigos. Reparem que Linguagens aparece no plural, justamente porque não podemos privilegiar apenas uma linguagem, mas sim as diversas linguagem que fazem parte do nosso universo cultural e de nossos educandos.
Renata do Monte Vecina, professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino.
6 pessoas comentaram:
Adorei! No meu tempo de escola tinhamos que "engolir" os clássicos nessa linguagem antiga que mal entendíamos. Hoje tem as obras em HQ. Nunca li nenhuma nesse novo tidpo de adaptaç#ao, mas fiquei interessada!
Bato palmas pra Renata! Ótimo trabalho! Também estudo pra ser professor, e acho que os atuais PCNs mostram abordagens muito interessantes e que deveriam ser pensadas e trabalhadas. Há professores ainda que, infelizmente, insistem naquele esquema quadro-e-giz + aula expositiva, tratando a literatura de forma linear, escolas etc., diminuindo o interesse dos alunos pelo tema apresentado, e ao não aproximar o alunado do mesmo, não possibilitando uma maior abertura para a construção do conhecimento.
Acho ótimo o trabalho que você fez, e essencial a percepção que outras linguagens podem ser utilizadas na sala de aula pra dar suporte e apoio ao ensino. ^^
Eu queria ter tido mais professores de língua portuguesa como você, Renata.
A minha prof. do ensino médio foi ótima. Mas percebia que ela mais quem gostava de literatura que se entregava às aulas dela. A maioria permanecia alheio. E é bem isso que você colocou que eu nunca tinha parado pra pensar: é quase unanimidade só se concentrar nas escolas literárias.
Parabéns pela sua visão tão holística e aberta ao conhecimento do mundo. Seus alunos tem sorte. Você é daquelas pessoas que fazem a diferença! =D
Texto excelente!
Essa abordagem é bem mais envolvente e provoca mais os alunos a inferir, argumentar...
Excelente texto, muito pertinente... mas só acho que qualquer desenho melhorzinho é mais atraente do que essa capa do livro O Guarani, que é igualmente contemporânea. Apenas mais brega. =)
Renata, desde a infancia sempre adorei ler HQ, eu devorava-os, era daquelas que esperava a turma da monica chegar as bancas. Teria dado mais sorte se vc tivesse sido minha professora, talvez eu tivesse me interessado mais pela literatura. Muito inteligente esta ideia de unir HQ a literatura em uma linguagem mais acessivel e interessante a idade né?! Parabens! Adorei!
Postar um comentário