domingo, 15 de maio de 2011

Minhas reflexões sobre o “primeiro” beijo gay da dramaturgia brasileira na TV



O título longo procede, afinal, o SBT exibiu seu primeiro beijo gay em um dos seus programas de calouros ano passado. Beijo entre dois homens. Mas o título também peca, porque descobri ontem que a Rede Manchete já tinha colocado um beijo gay no ar no longínquo – para quem é muito novinho – ano de 1990. E se eu que lia jornal da TV todos os domingos e leio sobre memória da TV em bases regulares não lembrava, é porque realmente ou ninguém viu, ou comprova-se a minha teoria de que essa neurose com a homossexualidade (*alheia*) e sua visibilidade é algo recente e importado do ambiente religioso fundamentalista americano. Ah, sim, era, também, um beijo entre dois homens! ntão, o beijo de Amor & Revolução foi o primeiro beijo homoafetivo (*de verdade*) em uma telenovela e o primeiro beijo lesbiano, também. Um marco, portanto, especialmente se tanta gente quer impedir que uma expressão básica de afeto entre os que se amam – o beijo – possa ir ao ar em nossas TVs.

Enfim, eu assisto Amor & Revolução. Não vejo somente os excelentes depoimentos do final, tampouco, sintonizei na novela somente para ver (Oh!Oh!Oh!) a “revolução” nas telenovelas com o tal beijo... Para quem andou escrevendo por aí que o beijo foi um “golpe” para atrair audiência, é bom esclarecer que ele estava previsto na sinopse. O que não sabíamos é que o beijo fosse ser entre duas mulheres lindas e, portanto, muito mais aceitáveis e de consumo erótico facilitado, por assim dizer. Eu me decepcionei, não pela cena em si, muito bonita, mas pela escolha “em cima do muro”. E dizer isso não me faz ser “pró-Globo” ou “contra o beijo homoafetivo”, simplesmente, não posso enfiar meu senso crítico debaixo do tapete. Entretanto, não vejo somente os pontos negativos e só estou escrevendo, porque acredito que é necessário refletir sobre prós e contras.

Foi revolucionário? De certa forma, sim. Afinal, foi necessária alguma coragem do SBT para colocar o beijo no ar. Muita, se levarmos em conta a mobilização de setores reacionários que querem privar os homossexuais, se possível, de qualquer direito de cidadania ou visibilidade, e até de suas próprias vidas, se o conjunto da sociedade permitir. Aliás, o momento foi bem propício, já que o Supremo cumpriu a sua missão, quando o Congresso se omite, e deu aos homens e mulheres gays direitos que lhes eram negados, como os de terem suas uniões estáveis (*não é casamento*) reconhecidas e tudo mais que essa situação traz como ganho (*pensões, heranças, direito a visitar o cônjuge no hospital, etc.*). Tiago Santiago foi muito feliz nesse sentido, já que se aproveitou do momento e colocou no ar a tal cena que, repito, estava prevista antes mesmo da trama começar. Ela poderia ter vindo depois, mas veio no momento da polêmica. Novela serve para isso, oras! E funcionou, a audiência da novela dobrou naquele dia em São Paulo. E, bem, as sondagens no Nordeste não são feitas, mas vejo muita gente de lá comentando no Twitter.

Agora, colocar duas das mulheres mais bonitas da novela (*para mim, são as mais bonitas, mais elegantes e bem vestidas*) se beijando tirou muito do impacto da cena e ficou assim, como diz o articulista da Folha de São Paulo, "poético". É verdade que ambas tinham uma história, eram personagens que foram sendo construídas e que nós, que assistimos a novela, conhecemos bem. A personagem de Vendramini foi preparando o terreno antes de abrir o seu coração. O diálogo entre as duas – dadas as limitações, seja do texto, seja da interpretação geral dos atores e atrizes da trama – ficou muito verossímil e tocante em alguns momentos. No entanto, a escolha, acabou reforçando um fetiche e, se foi uma cena marcante, foi, também, uma cena para homem hetero ver e, quem sabe, desejar ser o terceiro na cena.

E por que estou dizendo isso? A personagem da Vendramini assumiu ser bissexual. Ela não disse que teve experiências com homens e não gostou, que nunca conseguiu ter prazer em um relacionamento hetero, ou que se sentiu forçada pela sociedade a namorar com homens. Ela simplesmente disse que “gostava mais” de mulheres. Começou muito bem com um papo muito engajado e feminista sobre os homens odiarem a exclusão, de não serem fundamentais para que uma mulher tenha prazer e por aí vai. E eu pensei “Salvou-se a cena completamente!”, mas, logo em seguida, ela deixa claro que curte homens, também. A heteronormatividade continua ditando a regra, a subversão é limitada e a coisa se torna mais familiar e assimilável. Será que se fossem duas mulheres “masculinizadas” a coisa seria tão bem digerida? Ou duas mulheres negras? Ou duas mulheres pobres? Será que se fossem dois homens de qualquer condição a coisa seria tão bem recebida? Eu realmente acho que, não. E, bem, dizer que a turma homofóbica continua não gostando não diz nada, já que eles acusam até a Disney de estimular a homossexualidade, como se tudo fosse muito, muito simples: “Vi um desenho animado! Virei gay!”

Para mim, e posso estar sendo exagerada e/ou ácida demais, a cena foi esvaziada de boa parte de seu impacto. Mas conseguiu que a Folha de São Paulo, que só faz tacar pedra na novela (*vide: 123*), elogiasse o beijo gay. Eu sei que a razão da crítica é política, Amor & Revolução poderá até ser lembrada pelo beijo, ou beijos, já que o autor sinalizou que teremos outros, homoafetivos, mas ela vale muito mais por desenterrar os crimes da Ditadura, por dar voz àqueles que não tiveram chance de falar para o grande público, e falo, também, dos que foram alvos colaterais de ataques dos guerrilheiros, civis que tiveram suas vidas prejudicadas, pois os militares e policiais estavam na guerra e ponto final. Bolsonaro pode falar à vontade, seja elogiando a Ditadura, a tortura, seja achacando os homossexuais, mas as vítimas da Ditadura não conseguem ser ouvidas e são difamadas. A novela incomoda essa gente. É por isso, e somente por isso, que eu assisto Amor & Revolução, pois não retiro uma palavra do que escrevi sobre a qualidade dos atores e atrizes da trama ou do texto forçado na minha análise do primeiro capítulo. Se alguém quiser ver outras reflexões que fiz sobre questões homoafetivas, recomendo a resenha do filme A Single Man (Direito de Amar). E prometo que minha próxima “novelada” será sobre a levinha Cordel Encantado.
P.S.: Ontem, depois que eu tinha fechado esse texto, repassaram uma entrevista do autor da novela dada para o site da Revista Veja. Nesta entrevista, ele diz o que eu já tinah colocado aqui, mas muita gente empolgada não quer ver, olha só:
Escolher duas mulheres e não dois homens para a cena de beijo gay foi proposital?
Sim, foi uma estratégia minha. Um beijo entre duas mulheres choca menos. E existe um apelo para uma parte do público masculino que tem esse fetiche. Pensei com cuidado na cena e escolhi duas atrizes maduras, bonitas e muito femininas. Vai ser um beijaço, não um selinho. Essas duas personagens refletem o comportamento de um público que precisam e devem ter espaço para ser retatadas na dramaturgia.
Então, pessoal, é isso. Beijo entre mulheres bonitas é fetiche de muitos homens, o autor não foi progressista, ou não somente progressista, ele jogou, e jogou com o imaginário nacional, e lucrou. Se a coisa está sendo discutida, é até importante, mas não vamos tapar o sol com a peneira, OK? Há muitas mensagens nessa investida do SBT, mas não vejo a inclusão GBLT ou a visibilidade das relações homoafetivas como uma delas.

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