quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Comentando o filme Another Country (Inglaterra, 1984)


No domingo postei uma matéria sobre o filme O Discurso do Rei. Dentro do texto da Folha, havia um comentário sobre Another Country (Memórias de um Espião), a estréia no cinema de Colin Firth. Eu tinha o filme aqui no meu computador, mas com uma qualidade lamentável... Bem, decidi tentar baixar com uma qualidade melhor e consegui. Nunca é tarde para assistir um bom filme, aliás, Another Country foi um dos melhores filmes que assisti este ano, fora, claro, que é ótimo tentar identificar tantas caras que depois se tornariam mais ou menos conhecidas em séries da BBC ou filmes dos anos 1980 e 1990, como Nicholas Rowe, que fez Sherlock Holmes em O Enigma da Pirâmide, e é figurante no filme. Another Country é baseado em peça famosa (*baseada no livro... baseada em uma história real...*) e parece que toda uma geração de atores ingleses participou da peça ou do filme quando em início de carreira (Colin Firth, Daniel Day-Lewis, Rupert Everett, Kenneth Branagh, Cary Elwes, etc.).

A história do filme é mais ou menos a seguinte. Inglaterra, década de 1930, em colégio particular de elite masculino, estudam uy Bennet (Rupert Everett) e Tommy Judd (Colin Firth). Bennet sonha em ser diplomata e ser indicado para o seletíssimo grupo dos prefeitos do colégio em seu último ano. Esses garotos, que têm poder e prestígio dentro da escola, instituição que se organiza como se fosse outro país (*é uma das explicações do título*), são chamados de “deuses”. Só que Bennet afronta o sistema o tempo inteiro, é debochado e tem preferências abertamente homossexuais. Já Judd, que se considera “a piada da escola”, é um excelente aluno, mas comunista e crítico do sistema, daí, não quer ser eleito para coisa nenhuma, ainda mais para ter que garantir a manutenção de uma estrutura que ele considera abusiva, opressora e reprodutora do que de pior existe no capitalismo. 


Bennet e Martineau.
Os dois, apesar de muito diferentes, são grandes amigos e além de serem os párias do colégio. O filme começa com dois alunos, um deles prefeito, pegos em um ato homossexual por um professor. Para evitar a vergonha de ser expulso, um deles, Martineau, se suicida, dando início a uma perseguição, liderada pelo capitão de uma das casas, Fowler, de toda prática suspeita, em uma tentativa de abafar o escândalo e salvar o bom nome da escola. Só que Bennet se descobre apaixonado por James Harcourt (Cary Elwes) e todos os seus planos de se tornar “deus” são frustrados por Fowler, que odeia tanto Bennet, quanto Judd.

Another Country não é o primeiro filme, que assisto, que se passa nesses colégios internos ingleses de elite, e eu nunca vou deixar de achar esse tipo de instituição surreal, abusiva e quase fora do seu tempo... como um outro país, um pequeno microcosmo com regras próprias, mas que visa formar elementos conservadores da ordem constituída. É assim em IF, que termina com um grupo de alunos fazendo uma revolução e destruindo o colégio opressivo (*Ah, os anos 60...*) e é assim em Another Country. A diferença é que, em IF, eu conseguia entender perfeitamente as hierarquias do colégio, assim como em Harry Potter, porque acima dos prefeitos, todos, aparentemente, em pé de igualdade, havia o head boy e somente isso. 


Clandestinos.
Em Another Country a coisa é mais intrincada, há o head boy, que não tem falas e é interpretado por Guy Henry, o Mr. Collins de Lost in Austen, há os prefeitos comuns, e “os deuses”, que devem ser "super-prefeitos", junto com o capitão de cada casa... Confuso... Mais complicado ainda é que o subversivo Bennet pudesse acreditar que conseguiria afrontar todas as regras e, ainda assim, se tornar um dos deuses no último ano de colégio. Mas ele é um adolescente um tanto delirante, então até é possível...

Apesar da minha dificuldade em entender o emaranhado de hierarquias, achei Another Country um filme excelente, enfiando de forma poética o dedo em certas feridas. Tudo é narrado a partir do ponto de vista de um já idoso Guy Bennet, diplomata britânico que espionou para os soviéticos e vive exilado em Moscou. Ele se dispõe a dar uma entrevista para uma jornalista americana e começa a lembrar dos tempos de colégio e do seu primeiro contato com o comunismo, através de seu amigo Judd. Bennet é o elemento mais importante do filme e é feito por um inspirado Rupert Everett, que é um dos meus atores favoritos, ainda que eu ache que sua interpretação de homossexuais bem nascidos (*e eu só o imagino fazendo tipos aristocráticos mesmo*) sejam todas muito parecidas. É só pegar O Casamento do Meu Melhor Amigo e comparar com Another Country. A diferença é que Everett faz um adolescente, cheio de contradições, que deseja estar dentro do sistema, se aproveitar dele e, ao mesmo tempo, sabe que não será aceito por ser homossexual.

Uma piada respeitável.
A melhor cena do filme, para mim, é exatamente a conversa que ele tem com Judd, depois de ser punido (*isto é, ser ter levado uma surra de um dos prefeitos*), quando toma consciência de que realmente é gay e que está apaixonado por Harcourt. Só explicando, Bennet nunca era punido, porque chantageava os prefeitos com quem já tinha tido “casinhos”, só que Knowles consegue interceptar um bilhete que ele enviara para Harcourt, um rapaz de outra casa. Por conta disso, ele se sacrifica pelo amado, para que ambos não sejam expulsos. Como tinha chantageado os prefeitos antes, um deles, Delahey, faz questão de puni-lo de forma exemplar. Outra explicação, há muita gente que mantém práticas homossexuais, utilizando-se muitas vezes de violência contra os mais fracos (*caso dos colégios internos*), para se satisfazer sexualmente, mas não imagina a possibilidade de ser gay, aliás, despreza os gays. 

Bennet, ao longo do filme, toma consciência de que é homossexual e da dor que isso lhe causa, não por odiar a sua condição, mas porque não há espaço para ele "no sistema". Todo o seu sacrifício aturando dez anos daquele modelo pavoroso de educação foram, portanto, em vão. Daí, o confronto com Judd, quando ele assume sua condição de homossexual e o amigo tenta dissuadi-lo. O ponto alto é quando Bennet diz que por mais progressista que Judd seja, ele é tão homofóbico quanto os deuses que ele vê como reacionários.

JUDD: Não entendo. Por que não usou de chantagem outra vez?
BENNET: Porque...
JUDD: Por que... o quê?
BENNET: Porque se tivesse ido ao diretor... ele teria sabido de James.
JUDD: E daí?
BENNET: Teriam expulsado nós dois.
JUDD: Que sorte!
BENNET: Não posso fazer isso... eu o amo.
JUDD: Vamos, Guy.
BENNET: Não vou fingir mais... estou farto. Acha que é uma brincadeira, mas não é. Nunca vou amar uma mulher.
JUDD: Não seja ridículo.
BENNET: Martineau soube disso aos dez anos de idade e me disse.
JUDD: Isso não se pode saber nem com dez anos, nem agora.
BENNET: Sim... pode. Não é uma grande revelação. É admitir algo que sempre se soube. É um grande alivio.
JUDD: Não pode confiar em intuições como essa.
BENNET: Você é comunista porque lê Karl Marx? Não. Lê Karl Marx porque é comunista.
JUDD: Sinto por você...
BENNET: Assim é como reagem os amigos.
JUDD: Desculpa. Você está certo... Isso foi condescendente e inaceitável.
BENNET: Não pode evitar, não é? Porque no fundo, você, apesar da sua conversa sobre igualdade e fraternidade, assim como Barclay, Delahay, Fowler e Menzies ainda continua acreditando que umas pessoas são melhores que outras pelo modo como fazem amor. Pense nisso pelo resto de sua vida. Pense nos xingamentos como marica, viado, bicha, fadinha, fruta... Isso dói muito! Veja... Vou dar um passeio, vem? 
Mesmo sem entender bem o que o amigo sente, Judd o apoia.
Aliás, essa história de que basta ser de esquerda para ser despido de preconceitos, como se isso te desse um selinho de qualidade em letras vermelhas “não-homofóbico, não-racista, não-sexista”, é uma das maiores falácias já inventadas. E o quiproquó iniciado por conta do uso “feminazi” em um blog dito “progressista e de esquerda” ilustra bem a questão. Não sabe do que se trata, bem, d~e uma olhada nessas postas aqui: 1-2-3. Enfim, sem me desviar do filme, só tente imaginar a possibilidade de um pensamento inclusivo, que não julgasse as pessoas pela sua forma de "fazer amor" nos anos 30. 

E só mesmo o ódio que Bennet passa a nutrir pelo sistema para fazê-lo abraçar o comunismo. Afinal, até recentemente, ser homossexual e comunista não era uma possibilidade, e países como Cuba perseguiram e difamaram oficialmente os gays durante muito tempo. Mas Judd é ético e tem um apurado senso de justiça, reconhece suas limitações, e isso permite que os dois continuem amigos. Aliás, eu até imaginava, antes de ver o filme, que os dois teriam um caso., que esse seria o centro da trama. Bom ver que a relação dos dois é de amizade, e daquelas bem fortes que marcam a vida e são lembradas mesmo décadas depois. Afinal, heteros e gays podem ser e são amigos, independente da sua orientação sexual.

O sistema tenta formatar e cooptar a todos.
Enfim, a outra personagem marcante do filme é Judd, interpretado por Colin Firth. E ele não é rabugento, simplesmente critica o sistema, usando categorias marxistas, e tenta manter Bennet com os pés no chão. Mas ser crítico, na opinião de muita gente é ser "rabugento" e "mal resolvido". Ao contrário dos outros alunos seniors, ele trata bem os alunos mais novos, é cordial com eles, dentro de uma estrutura na qual os mais jovens são explorados pelos mais velhos tendo que limpar, lavar, engraxar sapatos dos seus “superiores”. Já tinha visto isso em IF, na época, achei muito estranho, mas parece que é a regra nas escolas inglesas. Para Judd o colégio é insuportável, ele quer ir embora, ser expulso até, ao contrário de Bennet, que odeia intensamente a instituição, mas quer se valer dela para subir na vida, conseguir status. E é por causa de Bennet que Judd acaba sendo confrontado com uma terrível possibilidade, se tornar prefeito.


Os prefeitos “deuses” não querem que Fowler se torne head boy (*acho que era para ser o geral da escola mesmo*), pois ele é arrogante, abusivo e fanático religioso. Mas eles precisam de prefeitos inferiores que ajudem a conter a subida de Fowler, talvez por terem direito a voto, isso não fica claro, para mim. Como já escrevi, a organização hierárquica do colégio é difícil de entender... Por conta da tensão, há uma ótima a cena em que um dos prefeitos tem uma crise em relação ao sistema, fruto do medo que tem de Fowler, e vai se abrir com Judd, que o destroça. Afinal, ter crises em relaçaõ ao sistema é aceitável, mas ele duvida que o prefeito vá romper com tudo e abrir mão dos seus privilégios. Como "classe superior", ele vai se adaptar. 

 Embora eu não entenda muito bem a trama, a proposta de se tornar prefeito "simples" é feita para Judd. Ele, claro, não era a primeira opção, mas o rapaz que ficaria com a posição estava sendo transferido da escola por conta do escândalo do suicídio de Martineau. Judd parece ter uma ficha limpa e era bom aluno. Bennet entra no jogo e recebe a promessa de que, se conseguir fazer Judd aceitar, ele será escolhido para ser “deus” no próximo ano. OK, e aí temos o segundo melhor diálogo do filme:
BENNET: Judd, Judd, Judd, Judd... A lua brilha em uma noite como esta. O vento beija suavemente as árvores. Em uma noite como essa Bennett trepa pelo muro de Gascoigne e encaminha sua alma até as barracas de Longford onde Harcourt se encontra essa noite.
JUDD: Não posso fazer isso. Não posso ser um prefeito.
BENNET: Por que não?
JUDD: Tenho uma reputação.
BENNET: O quê?
JUDD: Eu sou a piada da escola, já sei. Mas sou uma piada respeitável. Sou fiel aos meus princípios e isso agrada as pessoas. Se os abandono agora... Sinto muito.
BENNET: Você não se importa com o que as pessoas pensam.
JUDD: Sobre mim não. Dirão que tudo era falso.
BENNET: Não.
JUDD: Dirão “Isso é que ele dizia. Era só uma forma de se exibir.”
BENNET: Ao contrário, o fim justifica os meios. O que pode fazer mais comunista do que isso?
JUDD: Irão pensar que era tudo é falso! Pensarão que todos os comunistas são falsos.
BENNET: É isso o que dizem de Stalin.
JUDD: O que tem Stalin a ver com isso? Aquele homem está suando sangue para arrastar o seu país o século XX criando e criar todo um novo conceito de sociedade ao mesmo tempo. Não suporto quando as pessoas zombam dele... Piadas sobre o Czar... Rápido! Rápido!
Curiosamente, é muito mais fácil ver gente vendendo seus ideais, às vezes por causa de um “suposto” bem maior (*tipo feministas deixem de reclamar do termo “feminazi”, pois isso está desunindo a “esquerda” na internet*), do que se apegando ao que realmente é importante. Aliás, infelizmente, a gente faz isso o tempo inteiro. Judd não consegue, não quer. E não somente por causa dele, mas porque ele é a única representação de um grupo inteiro “os comunistas”, dentro de seu colégio de elite. E não estranhem a defesa de Stálin, afinal, o filme se passa nos anos 30. Judd termina morrendo na chamada “última guerra justa”, a Guerra Civil Espanhola, e não poderia ser diferente... Mas, claro, a trama dos prefeitos não termina como Bennet ou Judd esperavam, no entanto, tudo concorre para manter o sistema funcionando.

Rupert Everett estava lindo nesse filme.  Todos estavam, aliás.
Bem, já escrevi demais... Enfim, foi ótimo ver esse filme, seja por conta das discussões trazidas, seja para ver atores tão queridos em suas primeiras atuações. Eu não costumo achar o Colin Firth bonito em seus primeiros filmes, e o considero um Valmont muito inferior ao de John Malkovich, mas ele está muito bonito como Judd. Ele tinha feito Another Country no teatro, interpretando Bennet. Já Rupert Everett não estava estreando (*descobri que ele estava em um dos piores filmes que já assisti na vida*) no cinema, mas, também estava em início de carreira e muito bonito e muito charmoso. Outro estreante, era o bonitinho Carey Elwes, que chegou a fazer sucesso nos anos 80 e está em um dos meus filmes favoritos, Tempos de Glória, mas que acabou caindo meio que no limbo. Já falei que o Nicholas Rowe é figurante com nome, aparecendo em umas três ou quatro cenas de grupo. Eu o reconheci de cara. E ainda temos o Anthony Calf, que faz o Coronel Fitzwilliam em Orgulho & Preconceito de 1995. É um belo elenco.

É isso, recomendo Another Country. É um belo filme sobre amizade, que discute muito bem a questão da homofobia, da hipocrisia da sociedade, modelos de educação repressores, e de como as pessoas se aferram à privilégios. Além disso, é uma estréia bem respeitável para o Colin Firth. Para quem se interessar, essa página sobre Another Country é muito boa. Se o filme fosse lançado em DVD, eu compraria.

4 pessoas comentaram:

Gostei da resenha. O filme parece ser muito bom, embora eu fique perdido nessas hierarquias escolares.

Quanto ao feminismo, ele parece ser sempre considerado a "ultima causa", aquela á que todos vão se dedicar quando assuntos "mais importantes" estiverem resolvidos.

Meu palpite é isso ocorre pq a luta feminista é á unica que afeta os previlegios de todos os homens, não importando se são ateus,religiosos, esquerda direita, etc.

E justamente por se considerarem libeiras "do bem", eles (nós pq eu tb preciso me policiar sempre) não gostam de ser considerados preconceituosos e menos ainda admitir nossa parcela de responsabilidade nessa situação de opressão.

Ai regem com essa agressividade que condenariam nos "outros".

Só um achismo, mas é oq penso.

oi
parabens pelo blog q e sensacional

eu notei q a varias resenhas de filmes e series inglesas, vc poderia passa uma lista de filmes e series de relatos historico prinncipalmente da inglaterra q vc recomenda
por favor ^^

Fio, obrigada por visitar meu blog. Eu conheço três sites especializados em séries/filmes históricos que devem te agradar: Enchanted Serenity, Lights, Camera... History! (*é em inglês, mas as donas do site são portuguesas*) e um que está em hiato o The Period Movie Review. O Enchanted serenity tem uma lista enorme de séries e filmes, a maioria ingleses, já que a BBC produz muita coisa, o tempo inteiro. Espero que ajude.

Eu queria poder assistir à ele... mas eu não o achei em lugar nenhum �� Se puder me dar uma ajuda, eu agradeço

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