segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Comentando Jornada pela Liberdade (amazing Grace, 2006)



Dentre os DVDs que adquiri recentemente, Jornada pela Liberdade (Amazing Grace) deve ter sido a minha melhor compra. Sabia do filme desde 2007, e seu lançamento internacional foi planejado para coincidir com os 200 anos da lei inglesa que proibiu o Tráfico de Escravos. De resto, Amazing Grace com certeza não foi exibido nos cinemas brasileiros. Já tinha baixado o filme faz tempo, mas, por algum motivo não assisti. Olhava o DVD nas lojas e sempre pensava “Será que vale a pena?”. E eis que ele estava em promoção na Saraiva por R$12,90. Trouxe para casa. Bem, é um filme emocionante, que trabalha com flashback sem ser cansativo, fala de História sem ser didático, cobre um tempo longo da vida de um homem sem perder o ritmo narrativo, e, o mais curioso, talvez tenha sido o filme mais cristão que eu já assisti sem ser piegas e óbvio. Uma pequena pérola.

Jornada pela Liberdade, título nacional razoável de Amazing Grace, cobre a luta de William Wilberforce de 1782, quando ele inicia sua campanha no Parlamento Inglês pela abolição do tráfico de escravos, até o ano de 1807, quando a lei que abole o tráfico é finalmente aprovada. O filme mostra todas as dificuldades de um homem que, depois de sua conversão (*tenho quase certeza de que ele tornou-se metodista, ainda que nada tenha sido dito*), abandona a vida de desregrada e inicia uma cruzada de reforma moral, cuja principal bandeira é o fim da escravidão. Só que Wilberforce era uma figura muito curiosa, pois era também um defensor dos direitos dos animais, quando isso era algo que não preocupava praticamente ninguém.  O filme abre no ano de 1797, com a personagem muito doente, esgotada pela luta política, parando sua carruagem para defender um cavalo que estava sendo torturado pelo dono. A cena dá o tom do filme, Wilberforce é uma criatura apaixonada por suas causas, capaz de ir até a exaustão física e colocar sua reputação em risco pelo que acreditava.

O abaixo-assinado que não foi levado em conta.
Eu não conhecia nada da sobre a luta pela aprovação das leis anti-escravidão na Inglaterra. Sabia do envolvimento dos religiosos, e sempre faço questão de colocar isso quando dou minhas aulas, já que os livros fazem questão de somente repetir o blá-blá-blá marxista mais rasteiro de que a abolição da escravidão tinha fins meramente econômicos, ou seja, tornar o escravo consumidor. Só que detalhes eu não tinha mesmo. E foi muito divertido descobrir que muitos industriais eram a favor da escravidão, tinham lucros com ela e somente a muito custo a lei passou. E não foi aprovada de uma vez só, mas gradativamente, primeiro o tráfico, depois a escravidão como um todo.

O filme começa com a protagonista doente e perto dos quarenta anos de idade, mais de 15 anos depois de iniciada a sua luta. Deprimido, ele não acredita mais que possa vencer os escravagistas. Wilberforce é interpretado por Ioan Gruffudd e somente com muito custo lembrei de onde o conhecia... Não tinha sido de nenhum seriado da BBC, na verdade, ele fez o Sr. Fantástico do Quarteto Fantástico. E o ator, que não tinha me convencido no filme de super heróis, não dava nada por ele mesmo, a ponto de nem lembrar de onde o tinha visto, conseguiu me emocionar ao interpretar uma personagem tão apaixonada e humana. Talvez por compartilhar das opiniões ou por ver uma representação tão convincente do fervor religioso (*voltado para uma boa causa*), ele tenha me ganhado logo de saída.

A amizade de Wilberforce e Pitt é um dos motores da película.
Um dos destaques do filme é a maquiagem que rejuvenesce e envelhece Ioan Gruffudd de forma muito convincente. O mesmo é feito com Benedict Cumberbatch, o novo Sherlock Holmes da BBC, que faz William Pitt, melhor amigo de Wilberforce.  Ele é conhecido como "the younger", porque seu pai foi primeiro ministro, também, e por ser, até hoje, o político mais jovem a  ocupar este cargo na História da Inglaterra. Um dos focos do filme é a amizade dos dois, e é reforçado que foi Pitt quem atraiu Wilberforce para a causa abolicionista, pois não podia se dedicar a ela integralmente e focar às suas ambições políticas ao mesmo tempo. O filme vende a imagem dos dois como a de jovens que acreditavam que poderiam mudar o mundo, que viveram intensamente e pagaram caro com a sua saúde. Pitt morreu solteiro aos 46 anos e Wilberforce, como já escrevi, arrebentou com a sua saúde, mas conseguiu sobreviver até 1833, morrendo meses antes da aprovação da lei que aboliu a escravidão. O filme termina com um Wilberforce vitorioso em 1807 e, não, mostrando o sujeito que parece ter morrido deprimido por não conseguiu ver abolida a escravidão no Império Britânico.

Jornada pela Liberdade oferece um desfile de personagens históricas que participaram da luta contra a escravidão, alguns deles, conheci através do filme. John Newton (Albert Finney), ex-traficante de escravos, convertido, e que compôs o belíssimo hino Amazing Grace, eu já sabia quem era, afinal, é um dos meus hinos favoritos. Olaudah Equiano, ex-escravizado, escritor e ativista contra a escravidão, serviu para mostrar que os negros estavam envolvidos no processo, não somente como “problema”, mas lutando por sua liberdade. As lágrimas de Equiano quando a lei que proibiria o tráfico não é aprovada, foi uma das cenas mais comoventes do filme. Ele morreu sem ver a vitória de Wilberforce. Outra personagem importante é Thomas Clarkson que queria radicalizar a luta e levanta uma questão fundamental: os operários ingleses não estão em situação muito melhor que os escravos. Os industriais também concordam com isso e alguns usam isso como desculpa para defender a manutenção da escravidão. Só que Wilberforce não quer abraçar esta causa, muito menos ouvir falar em Revolução Francesa. 

Olaudah Equiano, uma das grandes personagens do filme.
Wilberforce era conservador, apesar de humanista.  O filme não se preocupa em ressaltar esse fato, e ainda que não o negue, não mostra o quanto Wilberforce foi reacionário em algumas questões. Clarkson é interpretado pelo excelente Rufus Sewell e é a terceira produção que vejo com ele em menos de uma semana. E há uma mulher no grupo de abolicionistas, Hannah More, que era uma escritora importante na época, uma das líderes do famoso grupo feminino conhecido como  Bluestocking.  Para se ter uma idéia, bluestocking foi sinônimo em inglês britânico de feminista.  Só que More não tem muito destaque, pois o foco é muito mais forte em Wilberforce e Pitt, com um pouco mais de destaque para Clarkson e para a personagem de Michael Gambon, Charles James Fox. Aliás, como Michael Gambon é engraçado sem perder a linha, a ironia da sua personagem é um dos pontos altos do filme. Só que a personagem não era um homem idoso como Gambon. O filme também consegue ser bem fiel na apresentação do Duque de Clarence, futuro William IV. A julgar pelo que li, ele deveria ser um verme, um sujeito corrupto e decadente.

A personagem feminina de maior destaque no filme é Barbara Spooner interpretada por Romola Garai. Ela se casa com Wilberforce, depois de se conhecerem em Bath (*cidade de várias histórias de Jane Austen*), e noivarem em pouco mais de uma semana. Wilberforce e Barbara foram apresentados por amigos e ela é mostrada como uma pessoa interessada pela causa abolicionista e admiradora de Wilberforce, que era quase vinte anos mais velho que ela. Depois que de casada, não se mostra mais o interesse de Barbara por política... Ainda assim, eu gostaria de ver mais mulheres nas reuniões abolicionistas, não somente Hannah More, pois duvido que ela fosse a única. Eu gosto de Romola Garai e achei a interpretação dela muito convincente. Fora que o seu figurino antes de casar era belíssimo, muito bonito mesmo. Agora, o vestido de casamento foi o mais feio que já vi na ficção e seu figurino de casada é a coisa mais sem graça... Sei lá o que aconteceu. Conseguiram até enfeiar a atriz.

Cantando Amazing Grace no casamento.
Já caminhando para o final, o filme é ótimo para discutir as duas principais crises políticas do final do século XVIII, a Revoluções Americana e Francesa. Ao que parece, com a Revolução na França e a guerra subseqüente, falar em fim da escravidão se tornou muito perigoso na Inglaterra, como que um convite à Revolução (*coisa que Clarkson defende no filme*), daí, apesar de todo o apoio popular (*390 mil assinaturas em uma petição*), das provas sobre os maus tratos aos escravos e tudo mais que Wilberforce e seus companheiros recolheram, a lei não foi aprovada e eles ainda ficaram manchados como traidores. 

 A conjuntura política abala a amizade de Pitt e Wilberforce, pois o primeiro ministro precisa assumir uma postura beligerante e mantenedora da ordem social. Mas lá adiante, a amizade dos dois é retomada em um dos melhores diálogos do filme. Depois, o próprio Pitt irá relembrar Wilberforce de que a luta não está perdida e a campanha recomeça. Além de falar de escravidão, conversão, e política, Jornada pela Liberdade fala de amizade. Enfim, um filme como esse seria ótimo para passar para as minhas turmas e discutir as complexidades da abolição da escravatura para além do econômico. Vou sair recomendando o filme.

O belo figurino de Romola Garai é um dos destaques do filme.
E, para terminar, o hino Amazing Grace toca três vezes no filme. A primeira cantado por Ioan Gruffudd (*acho que não foi dublado, enfim...*), da segunda vez no casamento de Wilberforce com Barbara à pedido da noiva, e da terceira, tocado por uma banda militar, quando a lei é aprovada e o filme termina. É um hino belíssimo, com uma letra muito comovente, e ter Albert Finney interpretando o autor de Amazing Grace tornou tudo ainda mais forte devido ao testemunho de arrependimento que a personagem dá. Bem, desculpem a rasgação, mas trata-se de um filme cristão no seu sentido mais puro e eu não consigo deixar de ressaltar isso. Pode ser exibido em igrejas e eventos com objetivo "inspirativo" e tem boa história e excelentes atores, ou seja, é possível fugir de coisas indigentes, moralistas, óbvias e rasas como Desafiando Gigantes (*me torturaram com esse negócio nas férias passadas... e dublado!*). 

Amazing Grace poderia até ser uma minissérie da BBC, afinal, é cheio de (*ótimos*) atores de suas séries (*O que me faz ter que escrever que Ioan Gruffudd provavelmente seria um Mr. Knightley muito melhor do que Jonny Lee Miller*), além de apresentar o mesmo cuidado na produção. O filme vale ser assistido pela sua reconstituição histórica, pelas interpretações apaixonadas, pela mensagem positiva de defesa dos direitos humanos e até dos direitos dos animais.



P.S.: O filme cumpre todos os pontos das Bechdel Rule, pois tem quatro personagens femininas com nome, duas delas conversam entre si e falam de abolição, não somente de Wilberforce.

5 pessoas comentaram:

Um otimo filme com certeza.

Realmente cristão.

E melhor de tudo contando uma historia verdadeira.

Quem disse que a Historia tb não é feita de causas nobre e sinceras?

Recomendo.

Resolvi pedir o dvd pela Livraria Cultura, a única que tinha. Filme histórico recomendado por você, e com o Benedict Cumberbatch, com certeza vale a pena. =]


Excelente resenha. Gostei muito dos resumos e dos comentários feitos pela autora (professora de história, não é?). Infelizmente, conheci alguns professores de história superficiais, mal-informados e cheios de tiques ideológicos. Para minha alegria, não foi o que encontrei aqui. Pretendo assistir o filme.

Adorei a resenha! E que venham mais resenhas de filmes construtivos!! Aguardando a Resenha dos outros 2 filmes que vc assistiu nessa semana 😂😂😂

Vixe, Giovanna! Até tenho duas resenhas para fazer - Zootopia e Angry Birds - mas a deste filme é antiga. Eu repostei, porque recebi um comentário e achei que valia a pena divulgar de novo. Obrigada, de qualquer forma!

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