Eu não costumo ler quadrinho europeu, é muito raro pegar alguma coisa e acho que conto nos dedos de uma das mãos quantos eu li. Quando minha amiga Natania me mostrou Aya de Yopougon, dizendo que era um quadrinho “africano”, não sei muita bola. Falei que era material feito na França blá-blá-blá... Má vontade minha. Depois, decidi procurar informações e, bem, decidi comprar um volume para ter a tal HQ africana em casa. Acho que parte da minha implicância era porque a autora, Marguerite Abouet, só escrevia, e não era como no caso da Marjane Satrapi que faz tudo em Persepolis. A arte era do francês Clément Oubrerie. Mas, enfim, depois de ler o volume lançado pela L&PM, me convenci de que o produto é africano, ainda que feito na França.
Apesar da autora negar, Aya de Yopougon é visivelmente um quadrinho autobiográfico, no estilo de Persepolis, que Abouet diz ter lhe servido de inspiração para fazer o seu, e tantos outras HQs feitas por mulheres no Ocidente. A autora também se propõe a fazer uma história que mostre uma África para além da miséria, e foca nas relações humanas, além de colocar a ação em 1978, antes, portanto, da guerra civil pavorosa que banhou de sangue a Costa do Marfim nos anos 90. No Amazon, alguém compara a série de Abouet com os livros de Jane Austen... Menos, eu diria, mas entendo os motivos, em Aya de Yopougon a autora fala somente do seu grupo social. Só que a minah crítica é a seguinte, Austen só fala da gentry - pequena nobreza proprietária de terras - porque é o que ela conhece; Marguerite Abouet só fala de sua classe média marfinesa, porque ela quer, para não mostrar misérias africanas. Isso, a meu ver, tira o impacto, e, por isso, ela perde fácil tanto para Austen, quanto para Marjane Satrapi. Queria ver o mundo maior pelos olhos de Aya. Será que acontece nos outros álbuns? Mas vamos aos pontos positivos austenianos do quadrinho.
Aya de Yopougon se centra no dia-a-dia de três amigas adolescentes. A protagonista, que dá nome à série, é uma moça séria, inteligente, e que quer ser médica. Ninguém a incentiva, até porque, ela é mulher e deveria pensar em se casar. Suas amigas, Bintou e Adjoua , só querem curtir a vida e conseguir um marido rico. Por conta disso, as duas vivem se metendo em rolos. As famílias que aparecem na série devem ser todas classe média para os padrões da Costa do Marfim da época, como deve ter sido a própria família da autora, já que têm telefone, carro até, mas o bairro d e Yopougon onde moram me lembra um pouco aqueles lugares pobres do Brasil. Ainda que a autora queira mostrar uma outra África, há coisas que saltam aos olhos.
Em Aya de Yopougon, vemos as famílias estendidas. Tanto Aya como suas amigas têm primos ou primas do interior morando com elas. A prima de Aya, Felicité, trabalha e seu salário sustenta sua família na aldeia. Segundo ela, isso é péssimo, porque seu pai aproveita para fazer mais filhos. Não conheço quase nada de Costa do Marfim, mas a impressão é que a autora tenta mostrar que houve uma bolha de crescimento econômico no país no final dos anos 1970 e Aya e as demais personagens se aproveitam dela. O pai de Aya, por exemplo, trabalha na maior fábrica de cerveja da Costa do Marfim, e o volume abre com a primeira propaganda de televisão feita no país, foi exatamente da tal bebida.
Aya tem humor e drama, mas o ponto forte são as questões de gênero. Aya, além de pressionada a não sonhar com um futuro profissional, tem que fugir do assédio sexual dos rapazes na rua. Um deles, aliás, bem violento, tenta bater na moça quando ela não lhe dá atenção na rua. As amigas de Aya, querem ter uma vida sexual livre, promíscua até, mas pagam alto preço por isso, apanham dos pais adúlteros, são presas em casa e vigiadas. Enquanto isso, seus irmãos fazem as mesmas coisas... mas eles podem, desde que não apareça uma moça na porta dizendo “toma que o filho é seu”, porque aí a casa cai.
Demorou um pouquinho para que eu me acostumasse com o ritmo de Aya de Yopougon. Definitivamente, não é tão engraçado e dramático quanto Persepolis, talvez a preocupação da autora em não falar diretamente de política, de mostrar misérias, e não fazer pontes com o macro e se focar nas relações interpessoais tenha parte nisso. Mas a autora é muito crítica das relações sociais, da hipocrisia dos mais velhos e dos ricos. O caso da gravidez de Adjoua coloca isso em evidência, ao falar de aborto, mostrar o medo do escândalo que o suposto pai da criança, um homem muito rico tem, e do desprezo que a família do rapaz sente por gente de Yopougon. A mãe de Aya, que é curandeira nas horas vagas, repreende a filha por “saber demais” e a submete a um exame de virgindade, quando ela pergunta se o “problema” da amiga não seria gravidez. Só que é exatamente por saber demais que Aya não entra em uma fria como essas.
Achei a tradução do volume um tanto irregular, pois insere gírias muito modernas, nada a ver com aquelas dos anos 70, ao mesmo tempo em que se esforça por manter o vocabulário típico da Costa do Marfim. Aliás, esse é um dos charmes do quadrinho, a forma como as palavras típicas se mesclam no texto. Obviamente, isso deveria ficar mais evidente em francês. E exatamente por isso, por saber que não terei condições de trafegar entre o francês padrão e o marfinês, que eu não devo arriscar comprar outros volumes da série no original caso a L&PM não lançar todos os volumes. Até agora, pelo que vi na página da Gallimard, são seis volumes ao todo. Aya está saindo nos EUA, também.
Gostei da história que foi contada neste volume, das discussões sobre papéis de gênero e das histórias paralelas a da protagonista. Já Aya, apesar de ser um pouco chatinha em alguns momentos, é bem crível e torço para que alcance seu sonho. Quando terminei, queria poder continuar e saber como terminaria o rolo do filho de Adjoua. O que falta um pouco na história, talvez, é olhar além de Yopougon, mas essa é a proposta da autora. Ela não quer mostrar miséria e não deve querer falar de política, também. Não concordo com a autora quando ela diz que escrever quadrinhos é “mais fácil”, simplesmente, não é a mesma coisa que escrever um livro. Aliás, um dos problemas de Abouet é não ter conseguido vender nenhum de seus livros. Aya foi uma vitória pessoal para ela, mas a arte de Clément Oubrerie, também em fazendo sua primeira HQ, ajudou muito. Seus desenhos são bem dinâmicos e as personagens ficaram bem simpáticas.
Falando um pouco mais dos extras do volume, depois da história temos vocabulário (*é assustadora a quantidade de sinônimos para "bunda" naquele país*), receitas e curiosidades sobre a Costa do Marfim, sua cultura e seu povo. Se o leitor quiser, pode arriscar fazer a sopa de amendoim. Agora, o problema é o preço,R$38 por menos de 200 páginas. Deveria ser muito menos, mas, aqui no Brasil, livros são muito caros. E isso, claro, prejudica as vendagens de um material como Aya de Yopougon que foi ganhou em 2006 o prêmio do Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême na categoria “melhor álbum de estréia”. Aya vendeu mais de 300 mil cópias e foi traduzida para pelo menos 12 linguas. Pelo que li, assim como Persepolis, vai virar filme. Resta saber se será animado ou com atores e atrizes de verdade.
P.S.: Estão disponíveis no Brasil somente os dois primeiros volumes. Nãos ei se algum sia irão concluir o lançamento. Para comprar no Amazon: Volume 1 e Volume 2.
Apesar da autora negar, Aya de Yopougon é visivelmente um quadrinho autobiográfico, no estilo de Persepolis, que Abouet diz ter lhe servido de inspiração para fazer o seu, e tantos outras HQs feitas por mulheres no Ocidente. A autora também se propõe a fazer uma história que mostre uma África para além da miséria, e foca nas relações humanas, além de colocar a ação em 1978, antes, portanto, da guerra civil pavorosa que banhou de sangue a Costa do Marfim nos anos 90. No Amazon, alguém compara a série de Abouet com os livros de Jane Austen... Menos, eu diria, mas entendo os motivos, em Aya de Yopougon a autora fala somente do seu grupo social. Só que a minah crítica é a seguinte, Austen só fala da gentry - pequena nobreza proprietária de terras - porque é o que ela conhece; Marguerite Abouet só fala de sua classe média marfinesa, porque ela quer, para não mostrar misérias africanas. Isso, a meu ver, tira o impacto, e, por isso, ela perde fácil tanto para Austen, quanto para Marjane Satrapi. Queria ver o mundo maior pelos olhos de Aya. Será que acontece nos outros álbuns? Mas vamos aos pontos positivos austenianos do quadrinho.
Aya de Yopougon se centra no dia-a-dia de três amigas adolescentes. A protagonista, que dá nome à série, é uma moça séria, inteligente, e que quer ser médica. Ninguém a incentiva, até porque, ela é mulher e deveria pensar em se casar. Suas amigas, Bintou e Adjoua , só querem curtir a vida e conseguir um marido rico. Por conta disso, as duas vivem se metendo em rolos. As famílias que aparecem na série devem ser todas classe média para os padrões da Costa do Marfim da época, como deve ter sido a própria família da autora, já que têm telefone, carro até, mas o bairro d e Yopougon onde moram me lembra um pouco aqueles lugares pobres do Brasil. Ainda que a autora queira mostrar uma outra África, há coisas que saltam aos olhos.
Em Aya de Yopougon, vemos as famílias estendidas. Tanto Aya como suas amigas têm primos ou primas do interior morando com elas. A prima de Aya, Felicité, trabalha e seu salário sustenta sua família na aldeia. Segundo ela, isso é péssimo, porque seu pai aproveita para fazer mais filhos. Não conheço quase nada de Costa do Marfim, mas a impressão é que a autora tenta mostrar que houve uma bolha de crescimento econômico no país no final dos anos 1970 e Aya e as demais personagens se aproveitam dela. O pai de Aya, por exemplo, trabalha na maior fábrica de cerveja da Costa do Marfim, e o volume abre com a primeira propaganda de televisão feita no país, foi exatamente da tal bebida.
Aya tem humor e drama, mas o ponto forte são as questões de gênero. Aya, além de pressionada a não sonhar com um futuro profissional, tem que fugir do assédio sexual dos rapazes na rua. Um deles, aliás, bem violento, tenta bater na moça quando ela não lhe dá atenção na rua. As amigas de Aya, querem ter uma vida sexual livre, promíscua até, mas pagam alto preço por isso, apanham dos pais adúlteros, são presas em casa e vigiadas. Enquanto isso, seus irmãos fazem as mesmas coisas... mas eles podem, desde que não apareça uma moça na porta dizendo “toma que o filho é seu”, porque aí a casa cai.
Demorou um pouquinho para que eu me acostumasse com o ritmo de Aya de Yopougon. Definitivamente, não é tão engraçado e dramático quanto Persepolis, talvez a preocupação da autora em não falar diretamente de política, de mostrar misérias, e não fazer pontes com o macro e se focar nas relações interpessoais tenha parte nisso. Mas a autora é muito crítica das relações sociais, da hipocrisia dos mais velhos e dos ricos. O caso da gravidez de Adjoua coloca isso em evidência, ao falar de aborto, mostrar o medo do escândalo que o suposto pai da criança, um homem muito rico tem, e do desprezo que a família do rapaz sente por gente de Yopougon. A mãe de Aya, que é curandeira nas horas vagas, repreende a filha por “saber demais” e a submete a um exame de virgindade, quando ela pergunta se o “problema” da amiga não seria gravidez. Só que é exatamente por saber demais que Aya não entra em uma fria como essas.
Achei a tradução do volume um tanto irregular, pois insere gírias muito modernas, nada a ver com aquelas dos anos 70, ao mesmo tempo em que se esforça por manter o vocabulário típico da Costa do Marfim. Aliás, esse é um dos charmes do quadrinho, a forma como as palavras típicas se mesclam no texto. Obviamente, isso deveria ficar mais evidente em francês. E exatamente por isso, por saber que não terei condições de trafegar entre o francês padrão e o marfinês, que eu não devo arriscar comprar outros volumes da série no original caso a L&PM não lançar todos os volumes. Até agora, pelo que vi na página da Gallimard, são seis volumes ao todo. Aya está saindo nos EUA, também.
Gostei da história que foi contada neste volume, das discussões sobre papéis de gênero e das histórias paralelas a da protagonista. Já Aya, apesar de ser um pouco chatinha em alguns momentos, é bem crível e torço para que alcance seu sonho. Quando terminei, queria poder continuar e saber como terminaria o rolo do filho de Adjoua. O que falta um pouco na história, talvez, é olhar além de Yopougon, mas essa é a proposta da autora. Ela não quer mostrar miséria e não deve querer falar de política, também. Não concordo com a autora quando ela diz que escrever quadrinhos é “mais fácil”, simplesmente, não é a mesma coisa que escrever um livro. Aliás, um dos problemas de Abouet é não ter conseguido vender nenhum de seus livros. Aya foi uma vitória pessoal para ela, mas a arte de Clément Oubrerie, também em fazendo sua primeira HQ, ajudou muito. Seus desenhos são bem dinâmicos e as personagens ficaram bem simpáticas.
Falando um pouco mais dos extras do volume, depois da história temos vocabulário (*é assustadora a quantidade de sinônimos para "bunda" naquele país*), receitas e curiosidades sobre a Costa do Marfim, sua cultura e seu povo. Se o leitor quiser, pode arriscar fazer a sopa de amendoim. Agora, o problema é o preço,R$38 por menos de 200 páginas. Deveria ser muito menos, mas, aqui no Brasil, livros são muito caros. E isso, claro, prejudica as vendagens de um material como Aya de Yopougon que foi ganhou em 2006 o prêmio do Festival Internacional de quadrinhos de Angoulême na categoria “melhor álbum de estréia”. Aya vendeu mais de 300 mil cópias e foi traduzida para pelo menos 12 linguas. Pelo que li, assim como Persepolis, vai virar filme. Resta saber se será animado ou com atores e atrizes de verdade.
P.S.: Estão disponíveis no Brasil somente os dois primeiros volumes. Nãos ei se algum sia irão concluir o lançamento. Para comprar no Amazon: Volume 1 e Volume 2.
5 pessoas comentaram:
viu! Natania às vezes acerta, hehehehehe :-)
Só às vezes? Você costuma acertar mais do que isso...
Falando em França, já viu isto Valéria:
http://www.bodoi.info/news/2010-09-23/manga-10-000-images-met-les-femmes-a-lhonneur/37988
Eu tenho um dos números dessa coleção, sobre o Tezuka, é é uma das melhores referências sobre o autor que eu já vi! Se esse volume sobre shojo tiver a mesma qualidade, é obrigatório!
Existe um sobre Yaoi também, mas eu não tenho nenhum interesse no gênero...
Só às vezes? Você costuma acertar mais do que isso...
Falando em França, já viu isto Valéria:
http://www.bodoi.info/news/2010-09-23/manga-10-000-images-met-les-femmes-a-lhonneur/37988
Eu tenho um dos números dessa coleção, sobre o Tezuka, é é uma das melhores referências sobre o autor que eu já vi! Se esse volume sobre shojo tiver a mesma qualidade, é obrigatório!
Existe um sobre Yaoi também, mas eu não tenho nenhum interesse no gênero...
Pior que eu entendo a autora. A mídia costuma só destacar as misérias da África para fora do país e imagine como deve se sentir um africano que vê apenas isso sendo empurrado. É como quando só se empurra favela para o resto do mundo, e não somos só isso.
Sim, é compreensível, só que, ao mesmo tempo, é empobrecedor.
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