sábado, 6 de março de 2010

Lendo a releitura de Alberto Manguel do O Signo dos Quatro



Acabei de ler o capítulo sobre O Signo dos Quatro do livro do Alberto Manguel que comprei outro dia. Na verdade, comecei por ele, como quem me conhece poderia esperar. Agora estou na dúvida se passo para Memórias Póstumas de Brás Cubas ou para o Livro de Cabeceira. Devo pegar o primeiro.

Não me surpreendo em dizer que é um livro delicioso, mas exige uma erudição que eu não tenho, e acredito que jamais terei, para aproveitá-lo completamente. Mas não é preciso ser o protagonista de Kami no Shizuku (神の雫) para apreciar um bom vinho... Se bem que o exemplo é péssimo, já que eu não bebo. Um... Posso apreciar música sem ser uma especialista como o Chiaki. Melhorou, né? Enfim, vamos lá.

Manguel faz digressões sobre o livro, sobre o autor, sobre Holmes, sobre a “essência” das histórias de detetive clássicas, sobre a persistente xenofobia inglesa (*ele morou na Inglaterra*) e como ela aparece descaradamente em Sherlock Holmes, assim como o antissemitismo (*eis uma das únicas formas da nova ortografia que eu aceito usar*) que o autor pinça aqui e ali em livros de detetive ingleses até o ano de 1941. Manguel também faz a lista de seus romances de detetive favoritos, e eu não li nenhum da lista. Nenhum sequer! Ele excluiu Holmes, claro.

Sobre a história de detetive, ele afirma que na verdade ela “(...) não é sobre assassinato, mas sobre restauração da ordem." E a ordem é a ordem burguesa, que até admite que Holmes burle as regras para protegê-la, mas não a intromissão da “gentinha” ou do estrangeiro ameaçador. E Holmes ou Watson deixam isso muito claro, em descrições carregadas da refinadíssima ciência do século XIX, carregada dos mais absurdos (pre)conceitos sobre a superioridade do homem branco, europeu e cristão (*de preferência protestante*).

Em contrapartida, o autor pondera sobre a suposta permissividade de nossa época. Como somos livres, sem moral... essas coisinhas... Pois bem, Doyle abre e fecha O Signo dos Quatro com Holmes preparando sua dose de cocaína. Nossa época admitiria um herói abertamente cocainômano? Veria isso como um detalhe? “Não” é a resposta. Vejam que Holmes deixou de ser um viciado para se tornar levemente alcoólatra no filme de Guy Ritchie.

Quem é mais moralista? Os vitorianos ou nós aqui? E pior, sei que há versões adaptadas de Holmes que cortam essas partes, então, parte da audiência sequer está preparada para não reparar nessas coisas. Lembro, uns dois anos atrás, que comentando Holmes com meus alunos e alunas do Colégio Militar – porque eles lêem Holmes em literatura, pois já vi o desesperados com os livros na mão (*E eu que tinha que ler Coleção Vaga-Lume! Que inveja!*) – assustei toda a turma quando disse que Holmes usava cocaína. Tinham cortado esses “detalhes” dos livros. Como? Não me perguntem.

Enfim, o Manguel vai e vem, cita mil autores e fala de um trabalho que deve ser uma graça: o pesquisador literário que é contratado para livrar grandes estúdios de problemas com plágio. Como? Mostrando que quem acusa bebeu de outras fontes literárias. Daí, ele vai buscar as raízes de Holmes em outras obras só para ilustrar o que está dizendo. E sem recorrer ao óbvio Dupin do Crime da Rua Morgue (*e de novo, me sinto tão ignorante!*). Ele mostra como uma personagem do Signo dos Quatro é inspirada em Oscar Wilde. E, nossa! É mesmo. Doyle e Wilde colaboravam para a mesma revista.

Outra sacada é fazer a ponte entre as histórias de cavalaria com as de detetive ao estilo Holmes. E em o Signo dos Quatro encaixa: o herói e seu amigo (Holmes e Watson) devem salvar a donzela (Mary Morstan) de inimigos terríveis (*não mais o dragão, mas os estrangeiros cruéis*) e recuperar o tesouro. É isso mesmo. E, claro, entre cavaleiros e damas, basta a palavra empenhada, afinal, eles se movem por códigos rígidos, não são como a gentalha.

Para terminar meu comentário, comento como o Manguel toca na suposta homossexualidade de Holmes e Watson. E ele nem precisou citar a frase basilar “Watson, você vai me trocar por uma mulher?”, para mostrar o quanto o romance de Watson e Morstan parece implausível. E ele fundamenta com citações do livro os seus argumentos. Eu, na minha leitura do livro, não vi assim, mas faz anos que não leio O Signo dos Quatro.

Para o Manguel, os sentimentos românticos de Watson são forçados na história para livrar a amizade viril de qualquer suspeita. Enfim, talvez não seja para tanto, mas ele tem razão em comentar que a vida conjugal de Watson é muito confusa. E ele cita o cânon. Até hoje, nenhum estudioso da obra de Holmes é capaz de precisar se Watson se casou uma ou duas vezes. E, se foram duas, quem seria a segunda “Senhora Watson”.

Enfim, recomendo a leitura. É exigente, se você exige muito de si, mas se o objetivo é somente diversão, ela está garantida. A imagem que usei aqui no post, veio deste site aqui.

4 pessoas comentaram:

Oh, preciso ver esse livro, as questões parecem ser bem colocadas.

Mas serio que vc não leu os Crimes da Rua Morgue?

Não, não. Eu li Os Crimes na Rua Morgue, o Manguel é que não cita quando faz uma genealogia da personagem Sherlock Holmes. Ele segue outro caminho... e que caminho!

Por isso, eu me senti muito, muito, muito ignorante. ^_^

Oh, nem imagina que existia historias de detetives antes desses...

Ele não busca detetives. A teoria dele é que Holmes sofre de "Weltschmerz", ou angústia da existência, sensação de não-pertencimento. Ele cita um parágrafo do Signo, um de Fausto e um de Prufrock (*nunca ouvi falar*) que são muito parecidos.

Related Posts with Thumbnails