Como achei este texto do Hermano Vianna, um antropólogo muito importante e que trabalha com grupos ligados à cultura pop do Brasil, decidi postar. O artigo saiu no Globo do dia 27 de novembro e é bem interessante. No mesmo dia, saiu este aqui, também. Vocês podem ler on line. A página da Misako Aoki, a embaixadora kawaii é esta aqui.
Misako Aoki, embaixadora 'fofa' do Japão, vai à ABL
Por Hermano Vianna
Este sábado, o consulado japonês no Rio de Janeiro organiza o evento Cool Japan na Academia Brasileira de Letras (Presidente Wilson 203). A principal atração será a perfomance de Misako Aoki, que tem o cargo governamental de embaixadora kawaii do Japão (saiba mais sobre o encontro no blog do Rio Fanzine). A apresentação diplomática se confunde com o cotidiano de Misako: no palco ela simplesmente é o que mais gosta de ser na vida: uma lolita gótica. Não é uma personagem teatral, não no sentido mais tradicional do que se entende como teatro no Ocidente ou Oriente. Misako é uma lolita gótica também fora dos palcos, pelo menos em todos os momentos em que não exerce sua profissão também oficial de enfermeira. Ser lolita gótica, uma das tribos urbanas inventadas recentemente pelas meninas japonesas e seguidas por multidões de muitos outros lugares, é parte de sua identidade mais verdadeira, que mistura ação teatral e vida real o tempo todo. Interessante é ver essa experimentação juvenil pós-moderna, tão surpreendente e desconcertante, ganhar o apoio do governo a ponto de representar seu país em eventos internacionais.
Misako Aoki tomou posse como embaixadora kawaii em cerimônia do Ministério das Relações Exteriores, em Tóquio, 12 de março deste ano. Há um documento, sobre o evento e sobre um simpósio que discutiu paz e segurança na África, disponível no site do Ministério na internet. Os dois assuntos são tratados com igual importância, mesmo sabendo-se que kawaii significa fofura e que pode ter uma conotação infantil.
Não é brincadeira: a embaixadora kawaii é uma diplomata de tudo aquilo que é mais fofo. Além de Misako, há outras duas embaixadoras kawaii: Yuu Kimura, uma lolita harakaju (a moda pós-punk-rave do entorno da estação Harakaju, do metrô de Tóquio), e Shizuka Fujioka, lolita especializada em uniformes escolares. Uma lolita gótica se veste com roupas vitorianas, tudo retrô filtrado pelos interesses atuais de adolescentes japoneses. Parece estranho ver a aliança do governo com um fenômeno cultural tão "maluquinho"? A atitude é ousada. Mas passa a fazer total sentido quando percebemos que a fofura é apenas a face mais simpática de uma poderosa indústria cultural, que envolve trilhões de yens, e que faz o Japão hoje ser referência pop central para jovens de todo o planeta.
Essa indústria envolve jogos eletrônicos, animes (desenho animado) e mangás (histórias em quadrinhos). Para as novas gerações adolescentes de muitos países, a nova cultura japonesa ocupa lugar semelhante ao do rock ou do cinema anglo-saxão antigamente. É todo um novo imaginário, com linguagens muito específicas (começando pela leitura de trás para frente dos mangás - até nossa brasileiríssima Turma da Mônica já entrou nessa onda, inventando um gênero híbrido nipo-brasileiro), diante do qual muitos fãs não se contentam em ser espectadores passivos e até aprendem ideogramas para viver como seus personagens favoritos. E não é pouca gente que habita essas fronteiras porosas entre virtual e real criadas pelo pop japonês. No Brasil, eventos gigantescos juntam lolitas com gamers e cosplayers (a meninada que desfila como personagens de animes-mangás-games): 70 mil pessoas em Fortaleza, 80 mil em São Paulo etc. - mesmo sem patrocinadores e divulgação na grande mídia. Muito do que se vê nesses encontros já é criação antropofágica brasileira: danças pós-macarena ao redor de tambores taiko, ou cosplayers inspirados em Tropa de Elite.
O governo japonês percebeu esse potencial. Sua política cultural, que antes tentava difundir basicamente o definido como tradicional, agora se abre para o pop, também por causa de uma sequência de primeiros-ministros que tiveram gostos artísticos pouco ortodoxos: Junichiro Koizuki, fã de Elvis Presley; Taro Aso e sua paixão por mangá; ou o atual Yukio Hatoyama, estudioso da internet. O interesse político-econômico coincide com um momento criativo especial, onde grandes artistas aparecem entre os operários de uma indústria cultural pop diversificada, com reconhecimento crítico cada vez mais consolidado. Hoje em dia há consciência que Shigeru Miyamoto, criador dos games Mario e Zelda, além dos fofíssimos nintendogs, é dos maiores visionários da arte moderna, junto com cineastas como Hayao Miyazaki (diretor do primeiro anime premiado com Oscar), ou Mamoru Oshi (que abriu as seleções oficiais de Cannes e Veneza para os animes), ou meu favorito Satoshi Kon (responsável por Paprika, baseado na literatura de vanguarda de Yasutaka Tsutsui).
A lição japonesa, do governo assumir papel tão ativo na difusão mundial de sua inovação cultural (mesmo a mais recente, ainda não "estabelecida" e que não precisou de leis de incentivo para sua criação), poderia ser seguida por outros povos, inclusive nosso país do futuro. Qual seria o equivalente aqui de uma embaixadora kawaii? Embaixadores da capoeira ou da música popular, que já fizeram tão bem à nossa imagem/arte no mundo? Muita gente acha que cultura que faz sucesso não precisa de apoio governamental, que o mercado deveria cuidar de tudo. O Japão nos mostra (como antes Hollywood já mostrou) que mesmo a indústria cultural mais poderosa, e - consequentemente – a totalidade da cultura do país, pode lucrar com políticas pop-inteligentes de Estado.
HERMANO VIANNA é antropólogo, autor de "Galeras cariocas"
Por Hermano Vianna
Este sábado, o consulado japonês no Rio de Janeiro organiza o evento Cool Japan na Academia Brasileira de Letras (Presidente Wilson 203). A principal atração será a perfomance de Misako Aoki, que tem o cargo governamental de embaixadora kawaii do Japão (saiba mais sobre o encontro no blog do Rio Fanzine). A apresentação diplomática se confunde com o cotidiano de Misako: no palco ela simplesmente é o que mais gosta de ser na vida: uma lolita gótica. Não é uma personagem teatral, não no sentido mais tradicional do que se entende como teatro no Ocidente ou Oriente. Misako é uma lolita gótica também fora dos palcos, pelo menos em todos os momentos em que não exerce sua profissão também oficial de enfermeira. Ser lolita gótica, uma das tribos urbanas inventadas recentemente pelas meninas japonesas e seguidas por multidões de muitos outros lugares, é parte de sua identidade mais verdadeira, que mistura ação teatral e vida real o tempo todo. Interessante é ver essa experimentação juvenil pós-moderna, tão surpreendente e desconcertante, ganhar o apoio do governo a ponto de representar seu país em eventos internacionais.
Misako Aoki tomou posse como embaixadora kawaii em cerimônia do Ministério das Relações Exteriores, em Tóquio, 12 de março deste ano. Há um documento, sobre o evento e sobre um simpósio que discutiu paz e segurança na África, disponível no site do Ministério na internet. Os dois assuntos são tratados com igual importância, mesmo sabendo-se que kawaii significa fofura e que pode ter uma conotação infantil.
Não é brincadeira: a embaixadora kawaii é uma diplomata de tudo aquilo que é mais fofo. Além de Misako, há outras duas embaixadoras kawaii: Yuu Kimura, uma lolita harakaju (a moda pós-punk-rave do entorno da estação Harakaju, do metrô de Tóquio), e Shizuka Fujioka, lolita especializada em uniformes escolares. Uma lolita gótica se veste com roupas vitorianas, tudo retrô filtrado pelos interesses atuais de adolescentes japoneses. Parece estranho ver a aliança do governo com um fenômeno cultural tão "maluquinho"? A atitude é ousada. Mas passa a fazer total sentido quando percebemos que a fofura é apenas a face mais simpática de uma poderosa indústria cultural, que envolve trilhões de yens, e que faz o Japão hoje ser referência pop central para jovens de todo o planeta.
Essa indústria envolve jogos eletrônicos, animes (desenho animado) e mangás (histórias em quadrinhos). Para as novas gerações adolescentes de muitos países, a nova cultura japonesa ocupa lugar semelhante ao do rock ou do cinema anglo-saxão antigamente. É todo um novo imaginário, com linguagens muito específicas (começando pela leitura de trás para frente dos mangás - até nossa brasileiríssima Turma da Mônica já entrou nessa onda, inventando um gênero híbrido nipo-brasileiro), diante do qual muitos fãs não se contentam em ser espectadores passivos e até aprendem ideogramas para viver como seus personagens favoritos. E não é pouca gente que habita essas fronteiras porosas entre virtual e real criadas pelo pop japonês. No Brasil, eventos gigantescos juntam lolitas com gamers e cosplayers (a meninada que desfila como personagens de animes-mangás-games): 70 mil pessoas em Fortaleza, 80 mil em São Paulo etc. - mesmo sem patrocinadores e divulgação na grande mídia. Muito do que se vê nesses encontros já é criação antropofágica brasileira: danças pós-macarena ao redor de tambores taiko, ou cosplayers inspirados em Tropa de Elite.
O governo japonês percebeu esse potencial. Sua política cultural, que antes tentava difundir basicamente o definido como tradicional, agora se abre para o pop, também por causa de uma sequência de primeiros-ministros que tiveram gostos artísticos pouco ortodoxos: Junichiro Koizuki, fã de Elvis Presley; Taro Aso e sua paixão por mangá; ou o atual Yukio Hatoyama, estudioso da internet. O interesse político-econômico coincide com um momento criativo especial, onde grandes artistas aparecem entre os operários de uma indústria cultural pop diversificada, com reconhecimento crítico cada vez mais consolidado. Hoje em dia há consciência que Shigeru Miyamoto, criador dos games Mario e Zelda, além dos fofíssimos nintendogs, é dos maiores visionários da arte moderna, junto com cineastas como Hayao Miyazaki (diretor do primeiro anime premiado com Oscar), ou Mamoru Oshi (que abriu as seleções oficiais de Cannes e Veneza para os animes), ou meu favorito Satoshi Kon (responsável por Paprika, baseado na literatura de vanguarda de Yasutaka Tsutsui).
A lição japonesa, do governo assumir papel tão ativo na difusão mundial de sua inovação cultural (mesmo a mais recente, ainda não "estabelecida" e que não precisou de leis de incentivo para sua criação), poderia ser seguida por outros povos, inclusive nosso país do futuro. Qual seria o equivalente aqui de uma embaixadora kawaii? Embaixadores da capoeira ou da música popular, que já fizeram tão bem à nossa imagem/arte no mundo? Muita gente acha que cultura que faz sucesso não precisa de apoio governamental, que o mercado deveria cuidar de tudo. O Japão nos mostra (como antes Hollywood já mostrou) que mesmo a indústria cultural mais poderosa, e - consequentemente – a totalidade da cultura do país, pode lucrar com políticas pop-inteligentes de Estado.
HERMANO VIANNA é antropólogo, autor de "Galeras cariocas"