Para quem não mora em São Paulo ou não lê os jornais de lá, deixa eu esclarecer. Algum burocrata cretino – pois certamente não leu – decidiu comprar o quadrinho Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol da Via Lettera para crianças de oito anos em média, terceiro ano do ensino fundamental, que pela reforma é a antiga segunda série. Futebol, desenhos bonitninhos, talvez algo mais obscuro em questão (*olhem o preço do material*) e lá se vai um lote desses quadrinhos ser distribuídos. Só que o material não era para crianças, e estava carregado de palavrões, sexismos e por aí vai. Material adulto, portanto.
Só que quem dá a notícia, muitas vezes não sabe ou não quer saber, que há quadrinhos para o público adolescente e adulto, material que lida com questões que passam longe do universo infantil – ou daquilo que idealizadamente ele deveria ser – e que podem ser, sim, chocantes, pornográficas, crus na sua linguagem e por aí vai. Eu só digo uma coisa, quando saiu a notícia eu fiquei com MUITO medo, pois poderia ser um mangá. Só que ou não há mangás nessas listas do MEC, ou eles são minoria, então escapamos dessa.
De qualquer forma, para quem conhece a caça às bruxas aos quadrinhos nos EUA, havia o claro eco do que aconteceu naquele país nos anos 50 e que marcou os quadrinhos ocidentais e sua recepção. Ou quadrinhos eram material impróprio, ou coisa de criança, e no arrasto os quadrinhos para o público feminino foram para o espaço nos Estados Unidos. Mas antes que eu me desvie, segue o texto na Folha de São Paulo dos professores Waldomiro Vergueiro – que eu tive o prazer de conhecer através da minha amiga Natania – e Paulo Ramos denunciando os absurdos que já pipocaram sobre o caso – que é um caso político, afinal, a ignorância e os riscos. Posto para vocês, leiam, por favor, pois como algumas cabeças podem rolar dentro do governo Serra, talvez alguém queira culpar os quadrinhos pelo caso e não os burocratas que não fizeram o seu traballho.
Só que quem dá a notícia, muitas vezes não sabe ou não quer saber, que há quadrinhos para o público adolescente e adulto, material que lida com questões que passam longe do universo infantil – ou daquilo que idealizadamente ele deveria ser – e que podem ser, sim, chocantes, pornográficas, crus na sua linguagem e por aí vai. Eu só digo uma coisa, quando saiu a notícia eu fiquei com MUITO medo, pois poderia ser um mangá. Só que ou não há mangás nessas listas do MEC, ou eles são minoria, então escapamos dessa.
De qualquer forma, para quem conhece a caça às bruxas aos quadrinhos nos EUA, havia o claro eco do que aconteceu naquele país nos anos 50 e que marcou os quadrinhos ocidentais e sua recepção. Ou quadrinhos eram material impróprio, ou coisa de criança, e no arrasto os quadrinhos para o público feminino foram para o espaço nos Estados Unidos. Mas antes que eu me desvie, segue o texto na Folha de São Paulo dos professores Waldomiro Vergueiro – que eu tive o prazer de conhecer através da minha amiga Natania – e Paulo Ramos denunciando os absurdos que já pipocaram sobre o caso – que é um caso político, afinal, a ignorância e os riscos. Posto para vocês, leiam, por favor, pois como algumas cabeças podem rolar dentro do governo Serra, talvez alguém queira culpar os quadrinhos pelo caso e não os burocratas que não fizeram o seu traballho.
O óbvio: quadrinhos não são só para crianças
PAULO RAMOS e WALDOMIRO VERGUEIRO
Por trás dessa questão, parece estar um olhar ainda estreito sobre as histórias em quadrinhos, herdado das décadas de 1940 e 1950
REPORTAGEM DESTA Folha publicada na última terça-feira (dia19) revelou que uma obra em quadrinhos com palavrões e conotação sexual seria distribuída pelo governo paulista a alunos do terceiro ano do ensino fundamental. Em nota, a administração estadual reconheceu a falha e mandou recolher os 1.216 exemplares adquiridos.
O governador José Serra prometeu punição aos responsáveis e instaurou uma sindicância. Em entrevista ao telejornal "SPTV - 1ª Edição", da TV Globo, classificou o livro em quadrinhos como um "horror", obra de "muito mau gosto".
É preciso olhar criticamente esse noticiário, pois corre o risco de haver generalizações e reprodução de discursos antigos a respeito das histórias em quadrinhos. É o caso da associação delas somente às crianças.
A obra em pauta -"Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol"- não é direcionada ao público infantil. O álbum foi pensado para o leitor adulto, como confirmam o organizador da publicação, o ilustrador Orlando Pedroso, e outros desenhistas do livro.
O governo de São Paulo acerta ao não distribuir a obra a estudantes de nove anos. Nessa idade, o aluno não está preparado para uma leitura nesses moldes. Seria um desserviço pedagógico. Mas parece estar por trás dessa questão um olhar ainda estreito sobre as histórias em quadrinhos, herdado das décadas de 1940 e 1950.
Tal olhar ainda está presente também em parte da imprensa. Reportagem sobre o assunto, exibida na edição noturna do "SPTV", começava com a frase "as histórias são em quadrinhos, mas o conteúdo não tem nada de infantil". É um discurso que enxerga a linguagem como feita exclusivamente para crianças. É claro que o conteúdo não é infantil: a obra foi direcionada ao leitor adulto. A falha, assumida pelo governo do Estado, foi direcioná-la ao ensino fundamental.
Os quadrinhos, assim como a literatura, o teatro e o cinema, possuem uma diversidade de gêneros. Um deles é o infantil, do qual faz parte a Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa. Mas há muitas outras produções, direcionadas a diferentes leitores. Inclusive aos adultos, como provam muitas livrarias e as tiras publicadas neste jornal.
O mesmo discurso tende a ver os quadrinhos de forma infantilizada ou não séria. Essa generalização evidencia desconhecimento sobre as histórias em quadrinhos e sua produção e afastou das escolas, por décadas, essa forma de leitura.
Os primeiros passos para a inclusão "oficial" dos quadrinhos no ensino ocorreram no fim do século passado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, pouco depois, nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o atual secretário estadual da Educação, Paulo Renato Souza, era ministro da Educação e do Desporto. Os parâmetros traziam orientações para as práticas pedagógicas dos ensinos fundamental e médio.
Outra medida que levou as obras em quadrinhos às escolas ocorreu na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A partir de 2006, publicações em quadrinhos foram incluídas na lista do PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), que distribui livros para escolas de todo o país. A prática foi repetida nos anos seguintes e também no edital deste ano.
Em 2008, a pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", do Instituto Pró-Livro, revelou que as histórias em quadrinhos encontram forte eco entre os brasileiros. É o gênero mais lido entre os homens e o sétimo mais listado pelas mulheres. Especificamente entre estudantes até a quarta série, os quadrinhos são o terceiro item mais mencionado (36%).
São corretas as iniciativas de levar histórias em quadrinhos à sala de aula e ao roteiro de leitura dos estudantes. No entanto, há dois cuidados que deveriam ser óbvios, mas que o noticiário recente revelou que não são. O primeiro é haver uma seleção do material, de modo a separar as obras de melhor qualidade e destiná-las a seu público ideal. "Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol" tem qualidade. Mas não é destinada ao leitor juvenil.
O segundo cuidado é o de não associar as histórias em quadrinhos somente ao público infantil. Do contrário, corre-se o risco de repetir a falha agora vista e de generalizar discursos adormecidos, que são despertados em situações-limite como essa.
PAULO RAMOS e WALDOMIRO VERGUEIRO
Por trás dessa questão, parece estar um olhar ainda estreito sobre as histórias em quadrinhos, herdado das décadas de 1940 e 1950
REPORTAGEM DESTA Folha publicada na última terça-feira (dia19) revelou que uma obra em quadrinhos com palavrões e conotação sexual seria distribuída pelo governo paulista a alunos do terceiro ano do ensino fundamental. Em nota, a administração estadual reconheceu a falha e mandou recolher os 1.216 exemplares adquiridos.
O governador José Serra prometeu punição aos responsáveis e instaurou uma sindicância. Em entrevista ao telejornal "SPTV - 1ª Edição", da TV Globo, classificou o livro em quadrinhos como um "horror", obra de "muito mau gosto".
É preciso olhar criticamente esse noticiário, pois corre o risco de haver generalizações e reprodução de discursos antigos a respeito das histórias em quadrinhos. É o caso da associação delas somente às crianças.
A obra em pauta -"Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol"- não é direcionada ao público infantil. O álbum foi pensado para o leitor adulto, como confirmam o organizador da publicação, o ilustrador Orlando Pedroso, e outros desenhistas do livro.
O governo de São Paulo acerta ao não distribuir a obra a estudantes de nove anos. Nessa idade, o aluno não está preparado para uma leitura nesses moldes. Seria um desserviço pedagógico. Mas parece estar por trás dessa questão um olhar ainda estreito sobre as histórias em quadrinhos, herdado das décadas de 1940 e 1950.
Tal olhar ainda está presente também em parte da imprensa. Reportagem sobre o assunto, exibida na edição noturna do "SPTV", começava com a frase "as histórias são em quadrinhos, mas o conteúdo não tem nada de infantil". É um discurso que enxerga a linguagem como feita exclusivamente para crianças. É claro que o conteúdo não é infantil: a obra foi direcionada ao leitor adulto. A falha, assumida pelo governo do Estado, foi direcioná-la ao ensino fundamental.
Os quadrinhos, assim como a literatura, o teatro e o cinema, possuem uma diversidade de gêneros. Um deles é o infantil, do qual faz parte a Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa. Mas há muitas outras produções, direcionadas a diferentes leitores. Inclusive aos adultos, como provam muitas livrarias e as tiras publicadas neste jornal.
O mesmo discurso tende a ver os quadrinhos de forma infantilizada ou não séria. Essa generalização evidencia desconhecimento sobre as histórias em quadrinhos e sua produção e afastou das escolas, por décadas, essa forma de leitura.
Os primeiros passos para a inclusão "oficial" dos quadrinhos no ensino ocorreram no fim do século passado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e, pouco depois, nos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o atual secretário estadual da Educação, Paulo Renato Souza, era ministro da Educação e do Desporto. Os parâmetros traziam orientações para as práticas pedagógicas dos ensinos fundamental e médio.
Outra medida que levou as obras em quadrinhos às escolas ocorreu na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A partir de 2006, publicações em quadrinhos foram incluídas na lista do PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), que distribui livros para escolas de todo o país. A prática foi repetida nos anos seguintes e também no edital deste ano.
Em 2008, a pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil", do Instituto Pró-Livro, revelou que as histórias em quadrinhos encontram forte eco entre os brasileiros. É o gênero mais lido entre os homens e o sétimo mais listado pelas mulheres. Especificamente entre estudantes até a quarta série, os quadrinhos são o terceiro item mais mencionado (36%).
São corretas as iniciativas de levar histórias em quadrinhos à sala de aula e ao roteiro de leitura dos estudantes. No entanto, há dois cuidados que deveriam ser óbvios, mas que o noticiário recente revelou que não são. O primeiro é haver uma seleção do material, de modo a separar as obras de melhor qualidade e destiná-las a seu público ideal. "Dez na Área, Um na Banheira e Ninguém no Gol" tem qualidade. Mas não é destinada ao leitor juvenil.
O segundo cuidado é o de não associar as histórias em quadrinhos somente ao público infantil. Do contrário, corre-se o risco de repetir a falha agora vista e de generalizar discursos adormecidos, que são despertados em situações-limite como essa.
PAULO RAMOS, 37, é jornalista e professor adjunto do curso de letras da Unifesp (Universidade Federal do Estado de São Paulo). É autor de "A Leitura dos Quadrinhos".
WALDOMIRO VERGUEIRO, 52, é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador do Observatório das Histórias em Quadrinhos, da mesma universidade. É organizador do livro "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula".
WALDOMIRO VERGUEIRO, 52, é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e coordenador do Observatório das Histórias em Quadrinhos, da mesma universidade. É organizador do livro "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula".
4 pessoas comentaram:
Ainda bem que existem pessoas prontas p/ lembrar o obvio.
Pq nossas autoridades...
Duas coisas chamam atenção nesse caso: primeiro, que povinho mais arcaico e cheio de preconceitos. É claro que quadrinho não é só para ciança... ouso dizer que a grande maioria não o é. Coisa obvia que você descobre até lendo tiinha em jornal ¬¬
Segundo: me assusta pensar na maneira que os livros são selecionados... ninguém os lê? Olham o título, acham bonitinho e compram aos montes, sem nem se preocuparem em ver o que tem dentro?. Gostaria de saber que tipo de critérios esse povo usa...Não julgando o livro em questão, que nem conhecia, só chamo atenção para a falta de responsabilidade dos responsáveis pela compra.
Uma das maiores cagadas que o Governo do Estado fez esse ano. Ruim mesmo foi ter visto o nosso "excelentíssimo" governador José Serra falar no SPTV aquelas coisas... Parece que os caras selecionam esses livros pela capa... "Ah, é bonitinha e é bem desenhada, opa, o título tb parece legal, levemos para as escolas pq nossas crianças precisam de livros com capas bonitas!". Ridículo...
Puxa é uma pena que esse tipo de equívoco ainda aconteça...afinal há tantos HQs de qualidade para o público infantil,como Asterix,Turma da Mônica, e tirinhas educativas que acredito eu podem ser tanto destinadas ao público adulto como infantil como é o caso de Calvin,Mafalda, etc,voltando isso para os mangás,há uma variedade de obras de qualidade.
Que descuido em não considerar isso na prática!
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