domingo, 13 de maio de 2007

A Célula e o Tribunal



Total off-topic, eu sei, mas achei que como mulher e feminista precisava tocar na questão. Como disse uma amiga que faz Direito, esta discussão falaciosa tende minar o Estado Laico (*O Papa pediu educação religiosa obrigatória católica nas escolas públicas de todos os níveis*), a entravar discussões importantes como as relacionadas com a regulamentação do aborto (*"até quando", "por que", "quem" etc*), o transplante de órgãos (*se você não precisa de cérebro para viver, todo transplante é um assassinato*), programas estatais de controle de natalidade (*a secretaria para assuntos das mulheres queria atrelar os programas sociais do governo à adesão à programas de controle de natalidade... Quem foi que entravou? Adivinhem!*), as pesquisas científicas (*abordada no texto que segue*), o uso dos métodos anti-concepcionais (*não use nenhum, salvo a abstinência*) e favorecer indiretamente a expansão das doenças sexualmente transmissíveis, até porque a posição conservadora também é contra qualquer educação sexual. Bonito quadro, não é?

Fora isso, o papado que aí está parece disposto a jogar por terra tudo que foi decidido no Concílio Vaticano II que atualizou o discurso da Igreja, buscou a paz e a inserção dinâmica da instituição no século XX. Como historiadora vejo o revés como lamentável e indo além do que seria o esperado em uma época de backlash. A Igreja Católica sobreviveu tantos séculos exatamente porque teve jogo de cintura para superar obstáculos, se antenar com as mudanças e estruturar muito bem o discurso, não porque virou um fóssil vivo. Não podemos voltar para Trento, estamos no século XXI!

Leiam
o texto da Folha e atentem para a parte em que a cientista é acusada de estar defendendo um ponto de vista religioso. Os católicos ultra-consevadores são sempre neutros, os outros é que não são e as mulheres quando participam dessas discussões só tem o direito de reafirmar a discriminação contra elas mesmas, fora isso, são sempre vistas como "um problema" na "ordem do discurso". A Charge aí em cima é do Aroeira, que desenha para o jornal O Dia do Rio de Janeiro e sempre acerta. E quem quiser votar na enquete sobre o aborto que a Folha de São Paulo está promovendo, é só clicar aqui. Com a comoção gerada nos últimos dias, a exaltação da maternidade como "fim único" da vida das mulheres, o "não" virou.

+ Marcelo Gleiser

A célula e o tribunal
Pesquisa com embrião deve ser debatida sem viés religioso

Dia 20 de abril de 2007 ficará registrado como a data em que o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou, pela primeira vez nos seus 178 anos de história, uma audiência pública. Nada como a transparência para alavancar o processo democrático que, sem ela, é inviável. A pauta não poderia ter sido mais apropriada e relevante: a decisão sobre o uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas que visam desenvolver curas para uma série de doenças que matam ou incapacitam milhões de pessoas, do mal de Parkinson e do diabetes às paralisias causadas por danos à medula espinhal.

Fiquei orgulhoso quando soube que 96% dos senadores e 85% dos deputados federais aprovaram a passagem da Lei de Biossegurança em 2005, e que o Presidente da República fez o mesmo. Decisões como esta estão sendo duplicadas pelo mundo afora, pelo menos nos países que levam a pesquisa científica a sério, dada a promessa clínica desses futuros tratamentos. Mas meu orgulho durou pouco. Foi durante a sessão aberta do STF, onde 34 cientistas foram convidados para depor sobre a questão das células-tronco e suas implicações éticas, que a natureza do processo ficou clara.

Primeiro, é importante lembrar que a lei parou no STF devido à ação do subprocurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que a considera inconstitucional. Seu argumento, semelhante ao de grupos conservadores aliados da Igreja Católica, é que assim que o espermatozóide funde-se ao óvulo, está se falando de um ser vivo: destruir o embrião para extrair-lhe as células-tronco seria assassiná-lo.

A questão debatida assiduamente pelos cientistas, e que monopoliza a opinião pública, é determinar onde começa a vida. Entretanto, a resposta é completamente irrelevante para este debate. Isto por que não se está propondo a criação de fábricas de embriões para extração de suas células-tronco, a clonagem de humanos ou outros cenários funestos que incitam os piores pesadelos de livros e filmes de ficção científica. O que se propõe é a utilização dos embriões que seriam descartados por clínicas de reprodução por serem inviáveis, como argumentou a pró-reitora de pesquisa da USP, a geneticista Mayana Zatz.

Que fim mais digno pode ter um embrião condenado à destruição do que participar de uma pesquisa que tem o potencial de salvar milhões de pessoas? A escolha me parece semelhante, ao menos em parte, à dos que doam seus órgãos para transplantes. Ao menos partes de seus corpos poderão ajudar aqueles em necessidade, em vez de apodrecerem sob a terra ou de serem cremadas.

Focar o debate constitucional na questão de onde começa a vida é desviá-lo para o inevitável conflito religioso, tirando seu mérito científico. Não surpreende que Fonteles, franciscano, tenha acusado a doutora Zatz, judia, de ser influenciada por sua religião, que diria que a vida começa no nascimento e não na fecundação.[1] Ora, é claro então que a posição de Fonteles é baseada em sua fé e não em qualquer consideração científica. A primeira audiência pública do STF, um momento histórico para o Brasil, transformou-se numa troca de acusações de cunho religioso. Enquanto isso, milhões de pessoas continuam morrendo e os embriões apodrecendo nos congeladores ou no lixo.

A questão do uso de embriões decretados inviáveis para reprodução na pesquisa médica deve ser separada da questão religiosa. A missão da ciência é aliviar o sofrimento humano. A da religião também. A única inconstitucionalidade aqui é ir contra os votos dos representantes do povo e impedir que essa missão seja cumprida.


MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

[1] Além de judia ela é mulher, e as mulheres quando são convidadas a falar nesse caso, tem que fazer coro com a Igreja Católica que é quem o ex-Procurador da República representa. Agora, até onde me consta, a discussão da fé judaica - que é a mesma subjacente às nóias cristãs de qualquer linha - não é onde começa a vida, mas quando o ser humano que está sendo gerado recebe "alma". Mas claro, que discutir isso abertamente soaria ridículo em pleno século XXI revelar que o problema é esse. Então mudamos as palavras para conseguir o efeito desejado. Retornando ao judaísmo, nas suas vertentes ortodoxas, até que a criança coloque algum pedaço para fora, a vida da mãe tem prioridade (*o que não quer dizer defesa do feticídio, longe disso*) sobre a vida dela; a partir do início do parto, quando se receberia a alma, é preciso o esforço para salvar ambos. Para a Igreja Católica Romana, no seu viés conservador-ortodoxo, só quem tem prioridade é o feto e se for o caso, a mãe deve morrer e ter esperança de ir para o céu e para o rol dos santos por conta do seu nobre sacrifício...


P.S.: Só para fechar o pacote, ontem, além de dizer que o Catolicismo não foi imposto aos indígenas na América Latina (*Cóf! Cóf!*), o papa defendeu as mulheres... Disse que os latino americanos são machistas e quer que o Estado subsidie as mulheres que quiserem ficar em casa para cumprirem integralmente o seu papel, isto é, mães e esposas. Era tudo que queríamos ouvir, certamente, afinal, é isso que somos um útero domesticado e servil. Meu consolo foi ver a missa de domingo vazia (esperavam 500 mil, conseguiram pouco mais de 150 mil) e saber que a canonização também não reuniu nem de longe o público esperado. O papa, certamente, não é pop!

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