Ainda sobre a questão das charges do Profeta. Como o artigo da Folha de São Paulo de hoje é muito bom, estou postando. A gente começa a abrir mão das liberdades aos pouquinhos, e as primeiras a saírem perdendo não raro somos nós, as mulheres.
ARTIGO
Liberdade de expressão, moeda inegociável
THEODORE DALRYMPLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
A reação de ultraje de muçulmanos às charges de Muhammad publicadas em um jornal dinamarquês trouxe à tona uma divisão surpreendente no mundo ocidental. Demonstrando suma hipocrisia, insinceridade e covardia moral, britânicos e americanos, que não hesitaram em ir à guerra contra Saddam Hussein e em ocupar o Iraque, afirmaram compreender e solidarizar-se com os sentimentos muçulmanos. Já os franceses, que se posicionaram contra a Guerra do Iraque, declaram abertamente a defesa da liberdade de expressão.
Manifestantes muçulmanos em Londres ergueram cartazes exigindo que fossem decapitados ou mortos de outra forma os que "insultaram o islã". Um dos cartazes afirmava que nós, na Europa, ainda não vimos "o holocausto VERDADEIRO", ou seja, o massacre de infiéis pelos crentes. Esse slogan de gelar o sangue também deixou implícito que o genocídio de judeus nunca aconteceu e não passa de engodo sionista, cometido com finalidades de propaganda. Trata-se de uma crença inteiramente irracional, mas que é largamente difundida entre muçulmanos, do Irã até o Reino Unido.
O incitamento à morte constitui crime no Reino Unido, mas a polícia assistiu às manifestações sem fazer nada, aparentemente por receio de criar uma perturbação civil. Com isso, deu-se aos extremistas muçulmanos a impressão de que, se forem suficientemente intimidadores, eles, na prática, serão extraterritoriais -ou seja, não sujeitos às leis britânicas.
Na França, em contraste, dois semanários satíricos, o "Le Canard Enchainé" e o "Charlie Hebdo", voltaram ao ringue e zombaram inequivocamente dos islâmicos. A "Charlie" trouxe em sua primeira página uma grande charge de Muhammad, fazendo careta e cobrindo os olhos com as mãos e dizendo: "Ser amado por todos esses tolos não é fácil". Na terceira página havia uma grande charge de Muhammad olhando as charges e dizendo: "Essa é a primeira vez em que os dinamarqueses me fizeram rir".
Sob circunstâncias normais, eu consideraria errado ou falta de cortesia ofender as sensibilidades religiosas de outras pessoas, por mais absurdas que eu considere suas crenças. Certamente é condição necessária a uma sociedade tolerante que as pessoas estejam preparadas, embora não sejam obrigadas, a aturar as convicções das outras em silêncio, na esperança de encontrar outras coisas em comum com elas e em nome da paz e das boas relações.
Mas as circunstâncias criadas pelas charges dinamarquesas não são normais. Um grupo de muçulmanos dinamarqueses desonestos e agindo de má-fé levou as charges ao Oriente Médio especificamente para provocar problemas com seu país de adoção, e acrescentou três charges que não haviam saído no jornal dinamarquês e que eram muito mais ofensivas do que qualquer coisa publicada pelo jornal. É quase desnecessário observar que manifestações de protesto como a que terminou com a queima da embaixada dinamarquesa em Damasco não aconteceram sem a aprovação oficial, já que a Síria não é um país dado a manifestações espontâneas de livre expressão.
Tampouco pode ser dito que a objeção fundamental feita às charges foi que fossem desrespeitosas em seu tom ou abordagem. Afinal, a crítica ou rejeição respeitosa do islã (decorrente de uma crença filosófica na inexistência de Deus, e, assim, na crença de que Muhammad não pode ter sido seu profeta) não é bem-vinda nós países islâmicos. No caso de um muçulmano, uma declaração pública nesse sentido seria vista como apostasia, que, pelas leis islâmicas, poderia ser punida com severidade.
Em outras palavras, muçulmanos -e não apenas os extremistas- não querem que o assunto das máximas de sua religião seja mencionado, simplesmente. Os jordanianos, que não costumam ser fanáticos, detiveram e encarceraram um jornalista que exortou os muçulmanos a reagirem de maneira razoável às charges dinamarquesas. E é difícil pensar em um único país muçulmano que tolere o questionamento religioso público e livre ou a rejeição de todas as afirmações religiosas. Na medida em que isso é fato, os muçulmanos vivem em um mundo mental anterior ao Iluminismo, como se Voltaire nunca tivesse vivido. Ademais, os extremistas entre eles procuram impor essa mentalidade ao Ocidente. Os britânicos e americanos -mas não os franceses- já mostraram estar dispostos a aceitá-la, pelo menos no que diz respeito ao islã.
Se as coisas fossem diferentes -se muçulmanos em todo o mundo saudassem o questionamento religioso e filosófico livre, e se a liberdade de expressão fosse uma característica notável das sociedades islâmicas-, as charges dinamarquesas e aquelas que apareceram posteriormente nas publicações francesas teriam sido gratuitamente ofensivas. Em outras palavras, não teriam tido outro objetivo senão o de causar ofensa.
Na realidade, porém, as caricaturas dinamarquesas foram encomendadas precisamente porque o jornal considerou que os dinamarquesos estão praticando a autocensura com relação a Muhammad e ao islamismo -não por um desejo louvável de serem corteses com os muçulmanos, mas pelo medo covarde deles. E a reação muçulmana em muitas partes do mundo comprovou que os jornais estavam certos.
É claro que o confronto encerra grandes perigos, mas existem perigos igualmente grandes em se evitar o confronto quando este se faz necessário. Pode-se ceder em pontos de importância menor: por exemplo, no Reino Unido os motociclistas sikhs não são obrigados a usar capacetes, como o são os outros. Mas, quando se trata de um princípio fundamental, tal como a liberdade de expressão, para cuja conquista a Europa já derramou tanto sangue, não pode haver conciliação, mesmo que o não conciliar implique no risco de conflito.
Entretanto sou um homem tolerante. Pelo bem das boas relações estou disposto a abrir mão da exigência de que os muçulmanos peçam desculpas à Dinamarca pelo comportamento primitivo dos extremistas que existem entre eles. Águas passadas: esqueçamos o que já passou.
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Theodore Dalrymple, psiquiatra e escritor inglês, escreve no "City Journal", de Nova York
Tradução de Clara Allain
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