sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

IRSHAD MANJI

Irshad Manji é uma das minhas autoras favoritas. Feminista, Lesbiana e Muçulmana ela é capaz de fazer uma série de reflexões muito interessantes, algumas delas poderiam ser facilmente estendidas ao mundo dito "cristão" também. Foi um grande prazer então, no meio dessa controvérsia das charges sobre Maomé, encontrar um texto dela sobre o assunto na Folha de São Paulo. Como nem todo mundo tem acesso, decici reproduzi-lo aqui. O original, foi publicado no Wall Street Journal. Não achei o link, mas o artigo, originalmente chamado "Impure Islam" pode ser lido em inglês aqui. Nada a ver com anime ou mangá, mas absolutamente necessário. Eis o texto:

Acalmem-se, colegas muçulmanos!

IRSHAD MANJI No Fórum Econômico Mundial, em janeiro, observei algo revelador. Em uma sessão sobre a direita religiosa americana, um cartunista satirizou um dos mais influentes pastores cristãos dos EUA, Pat Robertson. Na platéia, rindo junto com o resto de nós, estava um destacado muçulmano britânico. Mas seu sorriso desapareceu no instante que nos mostraram uma charge zombando de clérigos muçulmanos.

Desde então, uma batalha acirrada explodiu entre a União Européia e o mundo muçulmano em torno de caricaturas do profeta Muhammad. Meses atrás, o jornal dinamarquês "Jyllands-Posten" publicou charges que mostravam o mensageiro do islã usando, entre outras coisas, um turbante transformado em bomba-relógio. Embora o jornal tenha pedido desculpas, a polêmica já se espalhou como uma metástase.

Em resposta, manifestantes muçulmanos incendiaram missões de países escandinavos na Síria, no Líbano e no Irã. Ameaças de bomba chegaram às redações de mais de um jornal europeu. Vários países árabes já chamaram seus embaixadores de volta de Copenhague. Boicotes de produtos dinamarqueses se espalham por supermercados em todo o mundo árabe, e muçulmanos de países tão distantes quanto a Índia e a Indonésia vêm invadindo as ruas para queimar bandeiras da Dinamarca -que incluem a cruz, um dos mais sagrados símbolos do cristianismo.

Na semana passada, milhares de palestinos gritaram "morte à Dinamarca!". Copenhague retirou seus cidadãos da faixa de Gaza e lançou um aviso urgente para que saiam da Cisjordânia. Muçulmanos também vêm sendo vitimados nos tumultos: 11 morreram só no Afeganistão durante de protestos.

As elites árabes adoram controvérsias como essa porque elas lhes oferecem oportunidades convenientes para desviar a revolta para longe das injustiças locais. Não surpreende que o presidente Emile Lahoud, do Líbano, tenha insistido em que seu país "não pode aceitar qualquer insulto a qualquer religião". Essa é boa. Desde o final dos anos 70, o governo libanês licencia a TV via satélite Al Manar, controlada pelo Hizbollah, uma das emissoras mais violentamente anti-semitas do globo.

Do mesmo modo, o ministro da Justiça dos Emirados Árabes Unidos disse que as charges dinamarquesas representam "terrorismo cultural, não liberdade de expressão". Isso é dito por um país que promove sua capital como sendo "a Las Vegas do Golfo", mas bloqueia meu website -muslim.refusenik.com- por considerá-lo "incoerente com os valores morais". Vai ver meu site deveria ser um cassino online.

Os muçulmanos têm pouca integridade quando exigem o respeito por nossa religião sem demonstrar respeito pelas outras. Quando foi que nos manifestamos contra a política da Arábia Saudita de impedir cristãos e judeus de pisar no solo de Meca?

Nada disso diminui a necessidade de que minha religião seja levada a sério. Afinal, os muçulmanos levam a sério até mesmo a necessidade de serem sérios: o islã tem um ensinamento contra o "riso excessivo". Não estou brincando. Mas isso quer dizer que devemos gritar "blasfêmia" contra retratos nada elogiosos do profeta Muhammad? Por Deus, não! Para começo de conversa, o próprio Alcorão observa que sempre haverá não-crentes e que cabe a Alá, e não aos muçulmanos, lidar com eles. Ademais, o Alcorão afirma que "não existe compulsão na religião", o que sugere que ninguém deve ser forçado a tratar as normas islâmicas como sagradas.

Ótimo, retrucarão muitos muçulmanos, mas estamos falando do profeta Muhammad -o mensageiro último e, portanto, perfeito de Alá. Entretanto a tradição islâmica reza que o profeta foi um ser humano que cometeu erros. É precisamente porque ele não foi perfeito que sabemos dos chamados Versos Satânicos, uma coletânea de trechos que o profeta teria incluído no Alcorão. Apenas mais tarde é que ele se deu conta de que esses versos glorificavam ídolos pagãos, em lugar de Deus. Segundo a tradição islâmica, Muhammad retratou os trechos idólatras, atribuindo-os a uma peça pregada nele por Satanás.

Quando nós, muçulmanos, colocamos o profeta num pedestal, estamos praticando uma idolatria própria. O objetivo do monoteísmo é adorar um Deus único, não um dos emissários de Deus. É por isso que a humildade requer que as pessoas de fé zombem delas próprias -e umas das outras- de vez em quando.

Eis, então, minha tentativa de zombaria: um padre, um rabino e um mulá se encontram numa conferência sobre religião e discutem seus diferentes credos. A conversa passa para o tema dos tabus.

O padre diz ao rabino e ao mulá: "Não me digam que vocês dois nunca comeram carne de porco".

"Nunca!" responde o rabino. "De jeito nenhum", insiste o mulá.

Mas o padre reage com ceticismo. "Falem a verdade -nem uma só vez? Quem sabe num momento de rebelião, quando vocês eram jovens?".

"OK", confessa o rabino. "Quando eu era jovem, eu uma vez mordi um pedaço de bacon." "Confesso", ri o mulá (mas não excessivamente). "Num arroubo de arrogância juvenil, experimentei uma costeleta de porco."

A conversa passa, então, para as proibições religiosas observadas pelo sacerdote. "Não me diga que você nunca fez sexo", diz o mulá.

"É claro que não!", protesta o padre. "Fiz voto de castidade."

O mulá e o rabino reviram os olhos. "Quem sabe, depois de alguns drinques?", brinca o rabino.

"Quem sabe, num momento de tentação, sua fé não tenha traquejado?" indaga o mulá.

"OK", admite o padre. "Uma vez, quando eu estava no seminário e fiquei bêbado, tive relações sexuais com uma mulher." "É melhor do que carne de porco, não é?", dizem o rabino e o mulá.

Obviamente, sou tão impura como feminista quanto sou como muçulmana. A diferença é que feministas ofendidas não vão ameaçar me matar. O mesmo não pode ser dito de muitos de meus irmãos muçulmanos.

Que parte de "não existe compulsão" eles não compreendem?

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Irshad Manji é autora de "Minha Briga com o Islã". Texto reproduzido com a permissão do "Wall Street Journal". Tradução de Clara Allain

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