Um jornal argentino de prestígio, não faz muito tempo, publicou charge certamente ofensiva aos brasileiros. Éramos retratados na figura de um macaquinho, usando chapéu palheta e camisa listrada, a evacuar produtos industrializados sobre o mapa do país vizinho.
Embora destituído de conotações teológicas -vivia-se apenas um dissenso comercial, entre os muitos que compõem a enfadonha história do Mercosul-, o desenho era sem dúvida grosseiro e carregado de preconceito, que todo humor, em alguma medida, implica. Registraram-se protestos enfáticos e, logo após, os correspondentes pedidos de desculpa. Enquanto isso, ninguém se mobilizou para pisotear a bandeira argentina, depredar consulados ou publicar, em represália, caricaturas hostis à imagem de Evita Perón, Sarmiento ou Diego Maradona.
Há alguns anos, o fotógrafo nova-iorquino Andres Serrano expôs, sob o título de "Piss Christ", a foto de um crucifixo mergulhado em um aquário repleto de urina. A obra, de péssimo gosto, suscitou escândalo entre muitos cristãos, que também questionavam a legitimidade do patrocínio federal concedido às experimentações do artista. Não se tem informação, entretanto, de que cidadãos americanos residindo em Roma, Lourdes, Dublin ou Aparecida do Norte tenham sofrido ameaças à sua integridade física.
Pode-se até entender que, no mundo islâmico, a publicação de charges representando -ainda mais satirizando- o profeta Muhammad suscite movimentos de acerba indignação. Pedidos de desculpa, tentativas oficiais de reparação, manifestações de apreço aos dogmas do islamismo pouco seriam capazes de fazer, entretanto, contra a histeria fundamentalista, para a qual conceitos como liberdade e tolerância não fazem nenhum sentido.
Caricaturas num jornal dinamarquês, ainda que insultuosas, não impedem ninguém de praticar a sua religião. Em Teerã ou Beirute, fanáticos querem entretanto impedir que alguém na Dinamarca escreva, leia e veja o que bem entender.
Lideranças muçulmanas julgaram oportuno lembrar, nessa conjuntura, que o Ocidente "perdeu o senso do sagrado". A pertinência da observação está sujeita a debate; que não seja motivo, entretanto, para aceitar com timidez e culpa a violência de sectários e extremistas.
Quando a TV exibe imagens de pré-adolescentes marchando uniformizados, de fuzis ao ombro, a gritar palavras de vingança, não é de "senso do sagrado" que se trata. Quando funcionários de organizações filantrópicas são ameaçados de morte simplesmente por terem origem européia, não são os valores espirituais da paz e da generosidade humana que estão sendo defendidos. Se um seguidor do Corão se sente ofendido quando alguém identifica o islã ao terrorismo, não é jogando coquetéis molotov em embaixadas que irá refutar essa acusação.
Mais do que o "senso do sagrado" - que dispensa desfiles militares, tiros de metralhadora para o ar, cenas de apedrejamento e atentados a bomba -, está em jogo aqui o senso da convivência pacífica, que concebe diversas formas de reparação civil quando suscetibilidades ou direitos são atingidos pela crítica. A liberdade de expressão é um valor universal que está acima das peculiaridades de cultura e das veleidades de cada crença particular. Ela é a condição de existência da própria liberdade de religião e das demais liberdades.
Mas fanáticos não querem reparação nenhuma. Querem impor, sobre cidadãos de todo o mundo, que a muito custo conquistaram sua própria liberdade, uma lei que se baseia no obscurantismo, na intolerância, no preconceito e no terror.
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