sexta-feira, 5 de agosto de 2005

Maduro encantamento


Esta é a crítica do Correio Braziliense que em versão on line é somente para assinantes:

Cinema/ Crítica - O castelo animado ***
Maduro encantamento

O castelo animado, do japonês Hayao Miyazaki, explora as possibilidades lúdicas e poéticas da animação

Ricardo Daehn
Da equipe do Correio

Há um momento de inflexão na carreira de Steven Spielberg – naquele ponto de amadurecimento com Império do sol – que apresenta um curioso paralelo com os bastidores de O castelo animado, novo longa de Hayao Miyazaki (de A viagem de Chihiro), a partir de hoje em cartaz na capital. A transição de Spielberg (versado nos imaginários infantis e adultos), na ficção, se dá pela transformação de um personagem, em meio a confrontos da Segunda Guerra, que tanto marcaram a realidade dos criadores de O castelo animado – o maior cineasta japonês de animação, Miyazaki, e a autora britânica do livro que dá base à fita, Diana Wynne Jones. Não à toa eles se imbuem, neste filme, de mensagens pacifistas. Vale lembrar que o cineasta teve a paixão por aviões (outro ponto comum com o Império do sol) estimulada por pai e tio que cuidavam de uma empresa de peças aéreas.

Selecionado, ano passado, para a mostra competitiva do Festival de Veneza, O castelo animado também dá conta do trânsito entre o conteúdo inegavelmente infantil e a admiração adulta. A aproximação entre os dois mundos parte da condição imposta à protagonista: por meio de um feitiço, Sophie deixa a casa dos 20 anos para chegar, de pronto, aos 90.

A transformação, porém, não se revela um passo absolutamente negativo, e é aí que reside uma das maiores qualidades de Miyazaki, sempre inclinado a surpresas. Com o novo aspecto, de idosa, Sophie subverte preconceitos e apresenta as vantagens da terceira idade, numa proposta de respeito alinhada à do cinema do nipônico Yasujiro Ozu. “Por que negar certos prazeres para uma velha?”, chega a questionar uma das personagens. No formato, o filme traz ares europeus e aposta no resgate de simplicidade: muitos traçados à mão e uma trama sustentada em ilimitada carga criativa. A opção por recorrer a valsas, na trilha, é outro diferencial.

O castelo móvel do título abriga os aliados de Sophie – que se passa pela nova faxineira do palácio. Numa jornada parecida com a de Dorothy de O mágico de Oz, ela trava contato com o anfitrião Hauru, o Mágico – que tem alter egos em Jenkins e Pendragon –, e com grupo que inclui o enigmático cachorro Hihn; Calcifer, um demônio incandescente; a volúvel Feiticeira dos Pântanos; Marko, um discípulo de magia; e o espantalho Cabeça de Nabo. É de um objeto inanimado do castelo – uma espécie de roleta (atrelada à porta) –, entretanto, que o diretor extrai o maior leque de possibilidades dramáticas já que, a cada rodada, a peça funciona como portal para realidades paralelas, numa lógica associada às cores da roleta.

Como ex-aluna de J.R.R. Tolkien (autor de O senhor dos anéis), a escritora Diana Wynne Jones tem noção do potencial das realidades deformadas, que vêm muito bem a calhar num filme de Hayao Miyazaki. Ele não se contenta em desafiar leis físicas (há personagens que caminham pelo ar, por exemplo), mas também adultera muito da racionalidade, com efeitos inesperados como o do suposto “mocinho” (já que os personagens renegam rótulos) que, temperamental, está sujeito a se derreter numa gosma viva.

Recheado de personagens em metamorfose, física e comportamental (como em A viagem de Chihiro), O castelo animado encanta pela sutileza com que repassa alertas de preservação ecológica e antibelicismo. Um recado de alguém que fala com propriedade de um período obscuro, a guerra, com poderoso arsenal lúdico.

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