terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Resenha do "Grande Livro dos Mangás" por uma Fã de Shoujo

Semana passada finalmente comprei o “Grande Livro dos Mangás” que havia sido lançado pela JBC há algum tempo. Ainda não havia chegado aqui em Brasília e, como não sabia se o conteúdo valia a pena, decidi folhear antes de comprar. Por coincidência, Kenshin Kaden chegou no mesmo lote, acabei optando pelo livro de Moliné que, na ocasião, me pareceu uma opção mais interessante. Depois, percebi também, que poderia servir de base para a próxima coluna.

Por que acrescentei “por uma fã de shoujo mangá” no título? Exatamente porque fiz uma leitura a partir de um ponto de vista, isso obviamente me fez perceber algumas coisas que um leitor ou leitora sem essa preocupação não iriam notar. Também devo ter perdido coisas, por desatenção ou desconhecimento, que um outro tipo de leitura poderia por em evidência. Enfim, nenhum leitor é neutro e cada um acaba mantendo uma relação muito específica e pessoal com os textos que lê.

Em primeiro lugar, acredito que fiz uma boa compra, precisamos de livros sobre mangá, livros que analisem o surgimento, o mercado, as segmentações, e que nos dêem como leitores uma visão para além do produto acabado e traduzido que chega às nossas prateleiras ou que baixamos na net. A aposta da JBC foi boa, pois a carência do nosso mercado é muito grande nesse sentido. Temos, claro, o livro da professora Luyten (Mangá – O poder dos quadrinhos japoneses, Editora Hedras, 2000), material de grande qualidade e muito útil, mas precisamos de mais. Nesse sentido, o livro de Moliné vem bem a calhar e na sua primeira parte (Por Dentro dos Mangás), que, na minha opinião, é o livro de verdade, tem um texto fluente, direto, jornalístico e quase sempre bem acabado.

Outro ponto positivo do livro lançado pela JBC é que ele é bem recente e foi adequado ao mercado brasileiro. O próprio autor escreve uma introdução para a edição brasileira e a Prof.ª Luyten faz a apresentação do livro. Por esses e outros cuidados, a edição brasileira ficou muito bem acabada, tendo, também, uma boa impressão, capa bonita, enfim, é um produto atraente. Além disso, o livro traz extensa bibliografia em inglês, francês, italiano, espanhol e português, abrindo caminho para quem deseja se informar mais ou mesmo iniciar pesquisas na área. Da bibliografia de Moliné, eu já li alguns livros, poucos, verdade, e é interessante perceber que mesmo citando Frederick Schodt em seu texto o autor depende menos do americano do que muitos outros que se aventuram a escrever sobre mangá. Para quem nunca ouviu falar dele, Frederick Schodt é um dos maiores especialistas em mangá e escreveu dois livros de referência sobre o assunto “Manga! Manga!”, do início dos anos 80, e “Dreamland in Japan – Writings on Modern Manga” de 1996. Ambos já deveriam ter edição brasileira e, espero que a JBC ou outra editora percebam isso o mais rápido possível.

De vantagem em relação aos livros de Schodt, se é que podemos dizer isso, o “Grande Livro dos mangás” tem a panorâmica sobre o mercado de mangá em várias partes do mundo. O primeiro livro de Schodt, “Manga! Manga!”, também faz isso, mas como é de 1983, muita coisa já mudou desde lá. No seu livro, Moliné fala da penetração do mangá na Europa (com ênfase na Espanha, claro, e na Itália), nos EUA, na América Latina, no Brasil, na Austrália e na Ásia. A parte referente à Ásia é pobre, principalmente porque é uma região de grande penetração dos quadrinhos japoneses, já a que fala da Europa é muito boa e traz informações novas (pelo menos para mim) e bem reveladoras. No caso do Brasil, minha única crítica seria a ausência da Animax entre as revistas que apareceram graças ao interesse em relação ao anime e mangá. O autor cita várias (Henshin – a JBC está publicando, oras, Herói, Anime-Do, etc) e omite exatamente aquela que foi a primeira especializada na questão e, dentro do seu gênero, a mais longeva. Enfim, me pergunto se o Peixoto já conseguiu desafetos até do outro lado do Atlântico...

Considero um dos pontos altos do livro a parte sobre os desenhistas estrangeiros no Japão e a possibilidade de se fazer mangá fora do seu país de origem. As informações que o autor traz não são muito animadoras e mostram que poucos desenhistas estrangeiros conseguem fazer mais do que uma publicação na terra do Sol Nascente. O autor não discute se é possível fazer mangá fora do Japão, mas fala dos desenhistas influenciados e termina apontando que, pelo menos em seu país, poucos conseguiram se firmar como profissionais. O que me faz apontar que não basta imitar o traço e as gags, é preciso criar seu próprio estilo e, mais do que isso, ter o que dizer ao público.

Antes de comentar a segunda (101 mangás de A à Z) e a terceira (101 autores de mangá de A à – quase – Z) parte do Livro, chegou a hora de fazer algumas críticas, fruto exatamente da minha leitura como fã – e pesquisadora diletante – de shoujo mangá. O autor não mostra particular preconceito em relação ao shoujo, aliás, muito ao contrário disso, usando inclusive vários exemplos tirados de alguns mangás femininos no decorrer do seu livro. O problema, eu diria, é que ele faz uma série de afirmações sem embasamento, e se resume a citar somente os shoujos que foram grandes sucessos comerciais de seu país. Um colega com quem eu comentei esse detalhe retrucou “Mas o que você queria?”, queria o mesmo tratamento dado aos shounen mangá, pois se ele cita mangás para o público masculino que nunca foram publicados na Europa, isto é, na Espanha, por que não fazer o mesmo com o shoujo?

Outro problema é quando o autor vai falar dos gêneros de mangá (p. 38-45), pois ele simplesmente inclui o shoujo mangá como um gênero, mas não o faz com o shounen ou o seinen mangá, por exemplo. Qual o problema disso? Primeiro, podemos encontrar shoujos de ficção científica, romance, colegial, histórico, policial, enfim, de todos os tipos possíveis. Mas como o autor diz que o shoujo é um gênero a parte (E por que? Não se explica.), ele termina por fazer afirmações do tipo “mangá de suspense com toques de shoujo mangá”. O que é isso? Não sei, ele também não se dispõe a explicar. Mais adequado seria dizer shoujo mangá de suspense. Ele também diz que há o gênero “esportivo”, mas existem mangás shoujo de esporte (Ace Wo Nerae, Hikari no Densetsu, Attack nº1, etc) que ele não cita nesta seção. Assim, parece que shoujo é um gênero que pode se misturar com vários outros, e não fica claro o que o shounen seria... ou, talvez, o shoujo esteja também sendo apresentado como um grande derivado do quadrinho masculino que se desgarrou em algum momento, o que efetivamente não é uma realidade.

Aliás, quando inicia a parte de shoujo enquanto gênero o autor afirma o seguinte "(...), com efeito, o shoujo possui peculiaridades gráficas e narrativas mais acentuadas que os outros tipos de mangá, o que o faz merecedor de um estudo à parte." (p. 40). Depois disto temos míseros quatro parágrafos para definir, explicar e aprofundar o que seria shoujo. Contraditório, para dizer o mínimo. Logo em seguida ainda afirma que o boom dos mangás de garotas mágicas foi nos anos 90, quando estas se fazem presentes desde os anos 60 com (acho que não seria exagero) centenas de séries lançadas e algumas de sucesso inegável como Mahou Tsukai Sally (que deu origem ao primeiro shoujo anime), Angel, Minky Momo, Fancy Lala, etc. Tudo bem que tem fã de Sailor Moon que até acha isso, mas um especialista em mangá não poderia cometer tal deslize. Na Itália, por exemplo, várias séries de mahou shoujo foram exibidas nos anos 80 e uma delas, pelo menos, Angel, circulou por toda a Latino América e Espanha.

O tópico “Erotismo” (p. 44-45) também é controverso e lá o autor diz o seguinte "De fato, as publicações de shoujo mangá com freqüência contém histórias do subgênero yaoi, que apresentam relações amorosas entre meninos (as adolescentes japonesas raramente saem com garotos de sua idade, é muito complexo mostrar uma relação entre uma menina e um menino num shoujo mangá, daí as histórias sobre relacionamentos entre meninos serem tão populares entre o público juvenil feminino) (...)" Não deve estar bem atualizado na sua leitura de shoujos, aliás, é a primeira vez que eu vejo alguém negando que o romance heterossexual seja um dos principais assuntos dos shoujo mangá, fora, claro, que este tipo de explicação para o yaoi também é muito, diria eu, peculiar. De onde saiu essa conclusão, como se chegou a ele? Nada, nem uma nota. Mas para quem quiser ler uma das boas discussões sobre o yaoi e sua função está disponível on line na página do antropólogo e professor americano
Matt Thorn,
este, sim, especializado em shoujo e melhor ainda, mesmo lecionando em uma universidade japonesa e tudo mais, ele se dispõe a responder as perguntas dos leitores.

Entrando na parte dois e três, eu acabei vendo a materialização deste desconhecimento –acredito que este é o problema, muito mais do que qualquer preconceito – nas listas feitas pelo autor. Na lista dos 101 mangás mais representativos, de acordo com o autor, somente treze (13) são shoujos. Destes treze, três da CLAMP (É fã, não tem como negar...), só que com X e Rayearth (!) não categorizados como shoujo mangá, assim poderíamos dizer que para o autor são somente 11 mangás femininos arrolados. Fushigi Yuugi também está entre os 13 e peço desculpa a quem gosta muito da série (eu mesma gosto), mas este quadrinho de Yuu Watase é somente um mangá mediano e ninguém ficaria defasado se não tivesse a chance de ler esta obra. Marmalade Boy, idem, mas pelo número de vezes que ele cita a série em seus exemplos, deve ser fã também. Assim, das treze séries são três mahou shoujo, talvez para ilustrar que o boom deste tipo de história foi realmente nos anos 90. De antes dos anos 90, somente A Rosa de Versalhes e Candy Candy (se ele não citasse talvez os fãs queimassem o livro em praça pública na Europa), além, claro, da Princesa e o Cavaleiro que sendo Tezuka figuraria em quase todas as listas que qualquer um pudesse fazer.

Moliné diz na introdução que para montar sua lista levou em consideração a qualidade estética, a popularidade que têm no Japão e/ou no Ocidente e a importância do autor. Depois pontua que selecionou obras que mesmo nunca tendo sido publicadas no Ocidente são fundamentais no seu país... (p. 13) de novo, faltaram os shoujo mangá. E o autor ainda se desculpa por não incluir mais mangás da CLAMP (Tokyo Babylon) e Ayashi no Ceres, que é da mesma autora de Fushigi Yuugi, na sua relação. De novo devo repetir que ele é muito fã. Para se ter uma idéia, Schodt faz um trabalho bem mais coerente em seu “Dreamland Japan”, pois faz uma lista muito menor (23 autores) e inclui proporcionalmente muito mais autoras de shoujo mangá (7) de sucesso no Japão, sem colocar nenhum trabalho de qualidade mediana ou esquecível em sua lista.

Quando vamos para os 101 autores mais representativos (para o autor e ele diz isso claramente na página 13) somente 17 autoras mulheres e, de novo, figuras como Yuu Watase entre elas, junto com gente do quilate de Ryoko Ikeda, Waki Yamato, Takemiya Keiko e Moto Hagio. Aliás, ele faz um elogio imenso às autoras dos anos 70 e só se dá ao trabalho de incluir A Rosa de Versalhes entre os 101 mangás mais representativos, esquecendo de obras que são lembradas até hoje no Japão como grandes marcos. Colocar na lista dos 101 mangás Fushigi Yuugi, 3 mangás da CLAMP e Zetsuai 1989 e não colocar NADA de Waki Yamato, Keiko Takemiya ou Moto Hagio é uma ofensa, não desconhecimento.

Devo fazer também uma crítica ao uso de alguns conceitos. O autor alterna as palavras estilo, tipo e gênero quase como sinônimos, sem precisar claramente em qual sentido está aplicando cada termo. Até comecei a refletir se shoujo e shounen não seriam estilos e não gêneros de mangá, mas não porque o autor tenha me estimulado. Também há o uso de subgênero e gênero alternadamente sem que o autor se defina e quando faz sua lista o autor também inclui outros gêneros que ele mesmo não havia listado na parte do livro que dedicou a questão. Assim, aparece o gênero “fantástico-romântico”, “family strips”, “magical girl”, “robótico”, “drama-didático” e por aí vai. Aliás, qualquer um destes podem se aplicar aos shoujos, enquanto que na categoria gênero nunca vem escrito shounen. Enfim, faltou definir bem as coisas. O mesmo vale para o gênero Antibelicismo (p.44), pois quando o autor fala da coletânea Combat (esmiuçada por Schodt em seu último livro) não deixa claro se fala de um mangá específico ou de uma lista telefônica.

Para concluir, digo que o livro também traz um minidicionário de mangá, algo muito útil, principalmente quando a gente se depara com algum termo japonês e não sabe o que é. Acho também que o título mais adequado ao livro seria “Grande Livro dos Mangás e Animes”, pois o autor não consegue (e quem consegue?) falar de mangá sem falar de anime. Aliás, o autor fala bastante de anime na primeira parte que é a parte substancial do livro.

Antes que alguém possa pensar que estou dizendo que não vale a pena comprar o livro, digo que muito pelo contrário, ele é, sim, muito interessante. Mais do que muita coisa que temos no mercado por aí. Como livro sobre mangá e anime ele é muito bom, apresentando problemas na sua parte sobre shoujo mangá. Mas só lembrando: o livro não é sobre shoujo mangá. Assim, a iniciativa da JBC é excelente e para que outras editoras se interessem por lançar material do tipo, precisamos prestigiar essas iniciativas. Só assim poderei esperar que um dia, a obra de Schodt seja publicada no Brasil, assim como outros livros sobre o mundo dos mangás e animes. (Talvez, e isso seja sonhar demais, até a dissertação de mestrado e a tese de doutorado da professora Yuko Fujino feita na USP, estes, sim, trabalhos sobre shoujo mangá.)

Publicado originalmente no site Anime6.

0 pessoas comentaram:

Related Posts with Thumbnails